Um livro muito conhecido traz o título de “Quem ama, educa”. Podemos considerar correta essa vírgula, embora ela esteja separando o sujeito oracional do resto da frase? O Doutor mostra que sim.
Existe algum caso na língua portuguesa em que se separa o sujeito do predicado por vírgula? Vejo esse erro com freqüência, até mesmo em veículos da grande imprensa; sempre achei que se tratava de um equívoco, mas fiquei em dúvida quando li a seguinte frase no seu artigo os nomes do peru: “Só sei que naquela época esta era a regra do jogo – quem domina e coloniza, dá o nome”. “Quem domina e coloniza” e “dá o nome” não são, respectivamente, sujeito e predicado da frase?
Guilherme Netto – Paris, França
Sim, Guilherme, está correta sua análise da frase que escrevi, assim como também é verdade que não se deve colocar, na pontuação moderna, uma vírgula entre o sujeito e o predicado. No entanto, como já frisei várias vezes, esta regra de pontuação é mais um conselho do que uma regra propriamente dita. Ela não tem, como as regras de acentuação, aquela obrigatoriedade que não admite divergências, e haverá casos, como este, em que é necessário (ou aconselhável) contrariá-la deliberadamente, a fim de tornar a leitura mais fluente.
O princípio geral é muito simples: como devemos reservar a vírgula para assinalar tudo aquilo que foge à normalidade sintática, é evidente que não há razão para separar o sujeito do verbo, nem o verbo de seu complemento, já que esta é a ordem canônica da frase no Português. Todavia, quando o sujeito for oracional (representado por uma oração subordinada substantiva), os bons escritores empregam, muitas vezes, uma vírgula para assinalar com maior clareza o fim do bloco do sujeito. Em Machado encontramos tanto exemplos sem vírgula (“Quem não viu aquilo não viu nada”; “Quem for mãe que lhe atire a primeira pedra”) quanto com vírgula (“Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência”; “Quem viesse pelo lado do mar, veria as costas do palácio, os jardins e os lagos…”; “Quem morreu, morreu”). Um excelente exemplo pode ser encontrado em Vieira: “…ninguém se atreva a negar que tudo quanto houve, passou, e tudo quanto é, passa”. Não podemos negar que a vírgula que foi empregada nos exemplos acima apenas veio facilitar o trabalho de processamento da frase; se ela fosse inadequada, ocorreria o efeito oposto. Foi certamente por isso que os nossos literatos sempre consideraram facultativa a vírgula nesta posição.
Num breve passeio pelo mundo dos provérbios portugueses, há muitos exemplos em que esta vírgula, embora possível, pode ser dispensada: “Quem avisa amigo é”; “Quem bate no cão bate no dono”; “Quem dá o mal dá o remédio”; “Quem quer o fim quer os meios”, “Quem não deve não teme”. Ela passa a ser muito útil, no entanto, nos casos de construção paralela, em que o verbo da oração substantiva é seguido imediatamente pelo verbo da oração principal: “Quem quer, faz; quem não quer, manda”. “Quem sabe, faz; quem não sabe, ensina”. “Quem procura, acha; quem guarda, sempre tem”. “Quem não faz, leva”. Agora, se o verbo for idêntico nas duas orações, esta vírgula passa a ser indispensável: “Quem deu, dará; quem pediu, pedirá”. “Quem vai, vai; quem fica, fica”. “Quem sabe, sabe”. “Quem pode, pode” — isso sem falar naqueles casos em que a forma verbal pode se confundir com um substantivo homógrafo, criando-se uma ambigüidade que a vírgula desmancha imediatamente: “Quem quiser, peça“; “Quem ama, cobra“; “Quem teme, ameaça“; “Quem deseja, casa” (não se trata de alguém que quer peça, ou ama cobra, ou teme ameaça, ou deseja casa).
Aqueles que protestam contra essa flexibilidade demonstram que não compreenderam que a razão de ser da pontuação é o leitor. Não se trata, aqui, de voltar àquela antiga visão de pontuação subjetiva, submetida ao simples capricho de quem escreve; bem pelo contrário: a finalidade exclusiva dos sinais de pontuação é orientar o leitor no trabalho de decodificar as frases que escrevemos. Tudo que contribuir para isso será bem-vindo (e vice-versa).
Depois do Acordo: freqüência > frequência ambigüidade> ambiguidade
leia também: Quem sabe, sabe
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