Caro Professor Moreno: a minha dúvida é quanto ao uso da expressão vou ir. O senhor escreveu, em uma resposta a outro internauta, que esta locução verbal seria condenada por gramáticos tradicionais. Gostaria de compreender melhor a razão para tal condenação. Há quem tente explicar dizendo que não se pode usar o mesmo verbo como verbo auxiliar e verbo principal. Contudo, sempre achei que a locução tenho tido, por exemplo, não ferisse as regras da gramática. Obrigada. [Andréa L. — Rio de Janeiro]
Prezado Prof. Moreno, estamos com uma dúvida, eu e um amigo: afinal de contas, a expressão vou ir — muito utilizada no Rio Grande do Sul — está correta ou não? Eu penso que não; ele acha que sim. Podemos dizer vou fazer, vou trabalhar, etc., mas vou ir? Obrigado e novamente parabéns pelo trabalho! [Rodrigo L.]
Minha cara Andrea: tens toda a razão: há vários exemplos de locução verbal, em nossa língua, em que aparece o mesmo verbo, tanto na posição de auxiliar quanto na de principal; os mesmos fariseus que condenam vou ir aceitam há de haver, vinha vindo, tinha tido. É evidente que o verbo só tem o seu significado pleno, originário, quando está na posição de principal; em “HÁ DE HAVER uma solução para este problema”, o auxiliar (há) exprime a idéia de “desejo” (leia-se: eu gostaria que houvesse) ou de “obrigatoriedade” (leia-se: deve haver), enquanto o principal é que tem o sentido usual de “existir”. Já falei sobre isso quando analisei a locução vinha vindo.
No caso de vou ir, Rodrigo, vem agregar-se um outro fato lingüístico muito importante: a forma preferida de expressar o futuro, no Português moderno, é uma locução verbal com a estrutura [ir no pres. do indicativo + qualquer verbo no infinitivo]. Essa estrutura (vou sair, vou poder, vou ficar, vou ser) concorre com outras possibilidades, também usadas, mas em menor escala: (1) o próprio PRESENTE DO INDICATIVO (“Amanhã eu posso“, “No ano que vem eu saio“); (2) o FUTURO DO PRESENTE (sairei, poderei, ficarei, serei); (3) a locução [haver + infinitivo]: hei de sair, tu hás de entender.
Estudos atualizados mostram que as hipóteses (2) e (3) são, no fundo, no fundo, a mesmíssima coisa. Como herança do Latim tardio, que substituiu a forma única do futuro por uma locução (amare habeo), nosso futuro, que parece ser uma forma una, na verdade é uma locução invertida, com o auxiliar haver à direita. Exemplifico: basta pegar “eu hei de comprar, tu hás de comprar, ele há de comprar” e inverter a ordem dos verbos: “comprar HEI, comprar HÁS, comprar HÁ”; uma pequena adaptação ortográfica, com a óbvia queda do H, e teremos comprarEI, comprarÁS, comprarÁ. Portanto, o que parece ser uma forma verbal simples é, na verdade, uma forma composta (comprar+ei, comprar+ás, etc.).
Não é por acaso que esse futuro não admite ênclise, segundo as gramáticas tradicionais (que não entenderam ovo do problema, como sempre), mas exigiria (segundo essas mesmas gramáticas…) uma coisa chamada de “mesóclise”, definida sinistramente como “o pronome no meio do verbo”. Na verdade, só existe PRÓCLISE ou ÊNCLISE, mesmo para verbos no futuro: ou usamos o pronome ANTES do verbo, como em “Eu te pagarei”, ou usamos o pronome DEPOIS do verbo, como em “Pagar-te-[ei]”. Quando digo “antes” ou “depois”, estou falando em relação apenas ao verbo pagar. O EI, que alguns confundem com uma terminação verbal, é só o nosso velho amigo, o verbo haver, desfigurado pela ausência do H, e a chamada “mesóclise” é apenas a colocação do pronome ENTRE o verbo principal e o verbo auxiliar.
O que está acontecendo no Português moderno, ao que parece, é uma troca de auxiliar: em vez de usar o auxiliar HAVER, como nas hipóteses (2) e (3) acima, estamos utilizando cada vez mais o auxiliar IR. Isto é: quando queremos expressar a idéia de futuro, ou empregamos o presente do indicativo (menos usado) ou empregamos a locução [vou + infinitivo]. Como todo e qualquer verbo pode, em tese, ocupar a casa da direita, vão formar-se locuções do tipo vou vir, vou ir. Erradas elas não são; podem soar ainda um pouco estranho para muitos ouvidos, mas muitos outros já se acostumaram a elas, inclusive escritores e compositores de renome. Só para adoçar toda essa explicação, dou um exemplo saudoso, de um escritor de respeito: Vinícius de Moraes, na música Você e Eu, feita em parceria com Carlos Lyra, usou, muito simplesmente (e em dose dupla):
“Podem preparar
Milhões de festas ao luar
Que eu não vou ir
Melhor nem pedir
Que eu não vou ir, não quero ir”.
Abraço para ambos. Prof. Moreno.
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