navegar é preciso

Prezado Professor Claúdio, tenho uma antiga implicância com o sentido metafísico que se deu no Brasil, desde Caetano Veloso a Ulisses Guimarães, para lema dos argonautas, que Fernando Pessoa usou no prólogo de sua obra poética: “Navegar é preciso, viver não é preciso”. Penso que o que o lema quer dizer que a arte de navegar é precisa, dispõe de mapas, instrumentos etc., ao contrário da arte de viver. Ignoro a origem da confusão semântica entre precisão e necessidade

Odilon A. — Porto Alegre 

Meu caro Odilon: queres saber de onde teria vindo essa confusão semântica entre precisão e necessidade? De de onde veio, eu não sei; sei apenas que o sentido principal de precisão, no Português atual, é o de necessidade (tanto no Houaiss, quanto no Aurélio). Segundo Houaiss, essa acepção foi atribuída ao vocábulo desde o séc. XVIII, o que já a tornaria mais do que respeitável, se não bastasse o princípio soberano de que as palavras são o que hoje valem, e não o que valeram um dia.

Pois quando Fernando Pessoa escreveu essa frase (ela faz parte de um texto encontrado em sua arca de inéditos), esse foi exatamente o sentido que ele deu a preciso

“Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: navegar é preciso, viver não é preciso. Quero para mim o espírito d’esta frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha”. 

O mais interessante é que ele estava repetindo uma frase famosa, dita por Pompeu, conforme nos relata Plutarco (Vidas, Pompeu, 50): “Na hora de partir, uma forte tempestade se abateu sobre o mar, deixando hesitantes os capitães dos navios. Então ele (Pompeu), dando o exemplo, foi o primeiro a subir a bordo, deu ordens para levantarem a âncora e gritou: “É necessário navegar, viver não é”. Graças a sua audácia e energia, ajudado pela Fortuna, ele encheu o mar com seus navios”. Embora Plutarco tenha escrito em Grego, foi em Latim que a frase correu toda a tradição literária ocidental (algo assim como navigare necesse est, vivere non est necesse). 

No entanto, tenho certeza de que a frase de Pessoa (não importa com que finalidade ele a escreveu; a poesia sempre ultrapassou o poeta) ficou famosa exatamente por ostentar essa rica ambigüidade entre necessidade e exatidão. A interpretação que preferes, Odilon, está lá; a outra, também. Vamos convir que é a marca de um gênio! Abraço. Prof. Moreno

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