[publicado em 16/05/2009]
Plutarco nos conta, em suas Vidas Paralelas, que Catão fazia uma campanha cerrada para que Roma destruísse de uma vez por todas os cartagineses, e para isso sempre encerrava seus discursos com uma frase que ficou famosa: ceterum censeo Carthaginem esse delendam (algo como “além disso, acho que Cartago deve ser destruída”). Como não consigo me conformar com a passividade ovina com que a nova ortografia vem sendo recebida no Brasil, pensei em imitar o venerável senador romano e concluir todos os meus artigos com uma frase que levasse meus leitores a perceber o oportunismo e a incompetência do Acordo. Eu já estava me ensaiando nesta cruzada quando, sem dizer água-vai, a Academia literalmente nos atropelou com a publicação do seu Vocabulário Ortográfico, cujos responsáveis um dia serão castigados por infligir ao nosso pobre idioma um dano ainda maior que os prejuízos causados por esta reforma infeliz. Em outras palavras, o Acordo foi a queda, o VOLP foi o coice.
Não vou tentar fazer uma lista completa de todos os problemas que ali existem; a experiência me ensinou que essa é uma estratégia ruim, pois o número excessivo de detalhes técnicos termina anestesiando o leitor, impedindo que ele distinga, no meio de todas as mudanças propostas, aquelas que realmente vieram atrapalhar sua vida. Por isso mesmo, vou me limitar a poucas (mas graves) denúncias.
1 — A grande justificativa dada pelos defensores do Acordo sempre foi a unificação da Português (não vou discutir se é possível ou não, desejável ou não, importante ou não; estou aqui para falar do VOLP). Foi em torno deste nobre objetivo que os países lusófonos se reuniram, dispostos a investir muito tempo (e muito dinheiro) para alcançá-lo; nada mais natural, portanto, que o Acordo, já no seu Artigo 2º, declare expressamente que todos os países signatários tomarão as providências necessárias para elaborar “um vocabulário ortográfico comum da Língua Portuguesa, tão completo quanto desejável”. É justo, dirá o meu leitor; afinal, quem quer os fins dá os meios, e a existência desse núcleo duro, comum a todos os países que falam a língua de Eça e de Machado, servirá de base para os dicionários, gramáticas e corretores de texto que vão nascer com a Nova Ordem.
Foi imbuída desse puro espírito fraternal que a simpática Academia Galega, ainda esta semana, entregou à Academia de Ciências de Lisboa uma relação do léxico comum aos portugueses e galegos; ao receber o vocabulário, o responsável pelo Instituto de Lexicografia ressaltou a importância desse tipo de contribuição para a elaboração de um documento de base, que se enriquecerá ainda mais quando todas as regiões lusófonas, de Cabo Verde a Timor-Leste, fizerem o mesmo. Perfeito! Se você aguçar bem o ouvido, prezado leitor, não deixará de ouvir, ao fundo, o som das harpas e o cantar dos anjos.
2 — Ora, aqueles portugueses que defendiam o sonho da unificação não perceberam com quem andavam a fazer acordos e caíram na esparrela. Não tinham a menor idéia da perversa arrogância do brasileiro de hoje, metido a malandro, matreiro, astucioso (o velho complexo de inferioridade invertido), que se acha mais esperto que qualquer estrangeiro, mais sabido que qualquer professor (“Meu mulato inzoneiro“, como diz Ary Barroso, na Aquarela do Brasil — leia-se, “que é sonso, manhoso, enredador”). Quando Portugal abriu os olhos, já estávamos com o nosso Vocabulário Ortográfico pronto, publicado e à venda por módicos R$120,00 (mais sobre isso, depois). O ingênuo europeu ainda perguntou, timidamente: “E o vocabulário comum, como fica?”. Nossa Academia, ou por estultice ou por esperteza (tanto faz, pois a vergonha que sinto é a mesma!), respondeu candidamente que o vocabulário comum estava pronto, só faltava agora o vocabulário ortográfico de nomes próprios — ou seja, fingiu não entender que, neste caso, o adjetivo comum significa “compartilhado, pertencente a todos”. A esta altura, caro leitor, você está olhando incrédulo para estas linhas. “Ah, essa não! Não acredito! Nossa Academia não faria isso!”. Pois fez. E pior: como a pergunta continuasse no ar, o responsável pela elaboração do VOLP, nosso bom Evanildo Bechara (que era considerado, até então, o gramático de referência do Brasil atual), teve a coragem de declarar, em entrevista à Folha de São Paulo, que os especialistas portugueses não foram consultados porque “em nenhum momento o Acordo fala em vocabulário comum. O VOLP, portanto, é brasileiro, e os outros países de Língua Portuguesa poderão criar os seus” — o que levou D’Silvas Filho, um dos ardorosos defensores do Acordo lá na terra de nossos avós, confessar, há poucas semanas: “Agora sinto-me perplexo, com o receio de que, efectivamente, esteja à vista uma mudança com perda da nossa identidade nacional na língua”. Só agora, digníssimo? Boneca Teresa! (a novela continua)
Depois do Acordo: idéia > ideia