Como já disse outras vezes, só dois tipos de pessoa não se importam com a ortografia. Há as alminhas rebeldes que pregam a liberdade absoluta no uso das letras e dos acentos por acreditar que uma regra — qualquer espécie de regra — é apenas outra forma de discriminação social que as elites inventaram para perpetuar sua supremacia; para um desses revolucionários de formigueiro, é claro, escrever como lhe der na veneta torna-se um verdadeiro ato de autoafirmação política.
Na outra ponta do espectro, encastelados no topo da montanha, vivem aristocratas como o Cardeal Richelieu, que tachava de plebeia qualquer preocupação com a grafia das palavras. Se ele vivesse entre nós, olharia para o hífen ou para o cê-cedilha com a mesma desconfiança com que a grã-fina olha para o indefectível pratinho de maionese no batizado do filho da empregada. Nós outros, contudo, que não pertencemos a nenhum desses dois grupos, achamos importante seguir, o mais fielmente possível, o modelo vigente, pois só assim fica assegurada a fluidez da leitura. Cada vez que me desvio da norma, quem sai perdendo sou eu, pois levo meu leitor a desviar sua atenção do texto para fixá-la na grafia da palavra.
Por esse motivo, entendo perfeitamente o desabafo do leitor Silvio C., de Campinas, que, como todos nós, vive aos tombos com o misterioso hífen: “Caríssimo professor, o emprego do hífen com o prefixo pre está me tirando o sono. Escrevo pré-escolar e pré-nupcial, mas predeterminado e preestabelecer? É isso? Mas não há critério? O Acordo esqueceu de fazer uma regra para isso?”.
Não, prezado leitor, existe uma regra, sim — na verdade, uma velha regra que está em vigência desde 1943, que o atual Acordo apenas confirmou. Trocando em miúdos, ela reza que o prefixo tônico pré- (bem como seus irmãos pós- e pró-) será sempre seguido de hífen: pré-fabricado, pré-pago, pré-pizza. Esta regra obedece ao princípio básico de que prefixos com sinal diacrítico (acento ou til) são morfológica e fonologicamente independente, devendo, por isso, vir separados do vocábulo que os segue.
Mas… (ouço, ao longe, o Diabo esfregando as mãos…), pelas mesmíssimas razões, a mesma regra determina que as versões átonas desses mesmos prefixos (pre-, pos- e pro-) não serão seguidos desse sinal: predispor, predestinado, preconcebido. É uma regra bem clara, mas, como você mesmo constatou, não serve para coisa alguma. Afinal, quem determinou que em preconcebido o E é fechado e átono, e não aberto e tônico (pré–concebido)? Isso, meu caro, é o 5º mistério de Fátima. Há discussões similares sobre o cheque predatado ou pré-datado, sobre prejulgar ou pré-julgar, sobre preaquecer ou pré-aquecer o forno antes de assar o bolo. Esta hesitação natural sobre a tonicidade do prefixo é histórica e jamais vai ser resolvida; nunca teremos certeza sobre a sua pronúncia e, ipso facto, de sua grafia. O máximo que podemos fazer, nesses casos, é ver o que o Aurélio, o Houaiss ou o Aulete andam fazendo, para então decidir se vamos ou não concordar com a opinião deles.