Quando um regime privilegia um pequeno grupo de poderosos, quando as massas, conduzidas por líderes populistas, tentam se sobrepor às leis e às instituições, caímos na CAQUISTOCRACIA — o governo dos piores.
Às vezes meus amigos me convocam para servir de árbitro em alguma questão de linguagem. Desta feita, a discussão foi sobre a paternidade de caquistocracia, este desajeitado vocábulo que serve de título à coluna de hoje (e que já vou, sem demora, dissecar para meus leitores). Um dos lados alega que é um neologismo criado pelo professor Michelangelo Bovero, de Turim, que esteve em Porto Alegre numa das edições do Fronteiras do Pensamento; o outro atribui a criação do termo a um pensador argentino, Jorge Garcia Venturini, num artigo publicado na década de 70, anterior aos trabalhos de Bovero. Como já faz tempo que deixei de trabalhar de graça, fixei um preço para essa arbitragem; agora que ambos os contendores já pagaram o combinado (dois quilos de uma erva-mate muito especial e outras tantas voltas de lingüiça caseira), publico aqui o resultado de minha pesquisa.
O interessante da questão é que tanto Bovero quanto Venturini (ambos são cientistas políticos) alegam ser o pai legítimo de caquistocracia, palavrona criada para designar “o governo dos piores”, em oposição à aristocracia, que seria “o governo dos melhores” — mas nenhum dos dois tem razão. Eles são autores da segunda metade do século 20, e o termo já vinha sendo usado há mais de um século antes de nascer Venturini, que é o mais velho. Uma rápida passada pelo OED (o grande dicionário da Oxford — o maior monumento lexicográfico que conhecemos) mostra que o termo caquistocracia (em Inglês, kakistocracy) era usado desde 1826, enquanto o adjetivo da mesma família, caquistocrático (kakistocratical), já aparece em 1641. O fato de ambos se declararem, formalmente, inventores de uma palavra que já existia não depõe contra sua honestidade intelectual; são incontáveis os artistas e pesquisadores de renome que foram vítimas de criptomnésia, esta ilusão de ser o primeiro a formular uma determinada idéia ou a empregar determinado vocábulo quando, na verdade, estão apenas recuperando, na memória, um conteúdo que foi colhido na obra de outrem.
Para entender melhor a motivação que fez esta palavra nascer (seja lá quem tenha sido o seu criador), é necessário voltar, na Grécia antiga, à obra de Políbio, que morreu no ano de 125 A.C. Assim como todas as coisas estão sujeitas à degeneração, dizia ele, assim também degeneram as formas de governo que podemos adotar. Assim como a ferrugem, para o ferro, ou o caruncho, para a madeira, são enfermidades internas que podem destruir esses materiais, cada um dos regimes políticos conhecidos traz consigo o risco de uma enfermidade que pode disvirtuá-lo: a monarquia, com o rei bom, pode degenerar em tirania (ou despotismo). A aristocracia, em que mandam os mais sábios (de aristós, “o melhor” + cracia, “poder”), pode degenerar em oligarquia (de olígos, “pouco” + arquia, “autoridade”), o governo de poucos, ávidos predadores da sociedade. Finalmente, a democracia (de demos, “povo”) pode descambar para a oclocracia (de óclos, “multidão”), o governo da ralé que, controlada por demagogos, usa a força bruta para se sobrepor à lei e às instituições.
O bom Políbio preconizava, como preferível, um sistema político que misturasse as virtudes das três formas benignas (monarquia, aristocracia e democracia) para estabelecer um regime misto em que os melhores mandassem em nome do povo, mas nunca chegou a pensar, como fez Bovero, na possibilidade oposta — um regime em que viessem a se combinar as características das três formas degeneradas (tirania, oligarquia e oclocracia). Afinal, Bovero, que é nosso contemporâneo, acompanhou a dissolução política que caracterizou a Itália de Berlusconi e viu nascer esse sistema — hoje tão próximo do Brasil e de seus vizinhos — que mistura a cega violência da massa, a oligarquia dos ricos e o autoritarismo quase ditatorial dos líderes demagógicos. Pois foi justamente para nomear esta sinistra combinação dos vícios e defeitos de todos os sistemas que lhe ocorreu (como já tinha ocorrido a outros, antes dele) juntar a cracia o elemento kakistos, “pior” (superlativo de kakos, “mau, ruim” — o mesmo que usamos em cacófato e em cacofonia). É claro que nem ele, nem Venturini, nem ninguém antes deles pode ser considerado o “pai” desta palavra. Caquistocracia nada mais era do que um vocábulo que já existia virtualmente no nosso estoque de palavras possíveis, à espera, apenas, de que a vida real produzisse as condições necessárias para que alguém a empregasse. É assim que a língua funciona.
Depois do Acordo:
lingüiça>linguiça
idéia>ideia