O verbo JUDIAR, hoje empregado sem qualquer conotação preconceituosa, esconde um antigo e surpreendente significado, raramente registrado nos dicionários e, por isso mesmo, desconhecido da maioria dos falam ou escrevem sobre o uso deste vocábulo.
A primeira consulta vem de um gaúcho que mora no Rio de Janeiro, ex-aluno e admirador, como eu, do professor Celso Luft (o que, nesta coluna, já dá direito de puxar um banco e ir sentando). Ele é gentil, mas seu raciocínio é tortuoso: “Gostaria de saber se a expressão baixo calão, usada pelos dicionários para classificar os palavrões, não poderia ser substituída por baixo escalão. Acontece que no dicionário do prof. Luft consta que um dos significados de escalão é “nível”; logo, baixo escalão teria o sentido de “baixo nível”, exatamente o conceito que se aplica aos palavrões ― o senhor não concorda?”.
Sinto muito, prezado amigo, mas não posso concordar; calão nada tem a ver com escalão. Escalão provém do Latim scala, “escala, escada”, que produz também escalar; é por isso que falamos, numa estrutura hierarquizada, em cargos ou postos que vão do baixo ao alto escalão. Calão, por sua vez, vem de caló, como os ciganos chamavam a si próprios e ao seu próprio idioma. Pela desconfiança histórica que os povos europeus votavam (ou votam) aos ciganos, o termo passou a designar “língua vulgar, grosseira, de pessoas de baixa extração”. Como estás a ver, entre calão e escalão há uma mera semelhança casual, a mesma que existe entre adulto e adúltero ou banha e banho, vocábulos que nada têm a ver um com o outro.
A segunda consulta vem de São Paulo, capital, assinada por Gabriel, um jovem que precisa de algo mais substancioso que uma simples aula de Português. Escreve ele: “Prezado prof. Moreno, tenho apenas catorze anos mas acompanho sua coluna pela internet. Gosto muito do bom humor e da franqueza com que o senhor trata as pessoas e por isso me animei a lhe fazer uma pergunta. Ontem eu li num site que o holocausto da Alemanha nazista não passa de uma invenção (que eles chamam de “holoconto“) e que a palavra judiar vem das maldades que os judeus costumavam cometer contra os cristãos. Essa explicação está correta? É impressão minha ou o site é meio racista?”.
Meu caro Gabriel, não fosse pela tenra idade eu não desculparia tuas dúvidas. “Meio” racista? Para começar, ele faz, a meu ver, duas coisas imperdoáveis: primeiro, nega o horror absoluto que foi holocausto; segundo, e talvez pior ainda, procura fazer humor com algo que jamais será engraçado (convenhamos, “holoconto” é uma blague de insuperável mau gosto). Já que freqüentas a internet, procura e acharás dezenas de depoimentos e documentários que vão ter dar uma visão aproximada dessa inexplicável explosão da maldade humana. Como diz Giorgio Agamben no início de seu livro sobre Auschwitz (a tradução é minha), “No campo de concentração, uma das principais razões para sobreviver é a idéia de um dia poder testemunhar sobre o que aconteceu” ― exatamente para neutralizar esses fanáticos do lado negro da Força que vivem tentando, dos modos mais delirantes, apagar de nossa memória o que nunca deverá ser esquecido.
É também um equívoco a explicação que eles dão para judiar. É importante lembrar que as judiarias (ou judarias, como eram mais conhecidas) eram os bairros judeus do Portugal antigo, similares às mourarias, onde se concentravam os muçulmanos. Nas Ordenações Afonsinas, que datam mais ou menos do descobrimento do Brasil, lê-se, no título 86: “De como os judeus hão de viver em judarias apartadamente”. Nas cidades maiores de Portugal, onde esse confinamento era imposto com rigor, era proibido ao judeu, sob graves penas, “andar fora da judaria depois de tanger a Ave Maria”, como nos explica o dicionário de Bluteau.
O verbo judiar, ao que parece, era usado justamente para descrever as incursões que os cristãos faziam nessas judarias para infernizar a vida de seus moradores ― daí o valor que este termo tem até hoje de “maltratar, tratar com escárnio”. “Vamos judiar!”, portanto, seria um sinônimo para “Vamos mexer com os judeus”. Contudo, contaminada por uma longa tradição de preconceito racial e religioso, a cultura popular (e, portanto, nossa língua) preferiu ver o judeu como o sujeito deste verbo (aquele que judia), quando, na verdade, ele era apenas o seu objeto direto (a vítima, ou seja, aquele que é judiado). O único dicionário que registrou esse ponto de vista foi o Aurélio ― mas apenas até sua segunda edição, a que eu uso, apelidada por mim de Aurélio-vivo (acredite, prezado leitor, esta é a mais confiável de todas, pois as edições seguintes, feitas depois da morte do mestre, continuam descendo vertiginosamente ladeira abaixo). Ali, o verbete judiar abre com uma definição que inexplicavelmente foi retirada das edições posteriores: “tratar como antigamente se tratavam os judeus: escarnecer,maltratar”.
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