Em Exactitude (“Exatidão”), uma das cinco conferências que estava preparando para apresentar em Harvard, quando a morte o surpreendeu em 1985, Italo Calvino nos faz uma vigorosa advertência contra essa “peste” que ameaça a linguagem neste milênio que se inicia:
“A precisão, para os antigos egípcios, era simbolizada por uma pluma que servia de peso num dos pratos da balança em que se pesavam as almas. Essa pluma levíssima tinha o nome de Maat, deusa da balança. O hieróglifo de Maat indicava igualmente a unidade de comprimento — os 33 cm do tijolo unitário — e também o tom fundamental da flauta.
“Essas informações provêm de uma conferência de Giorgio de Santillana sobre a precisão dos antigos no observar dos fenômenos celestes, conferência que ouvi na Itália em 1963 e que exerceu sobre mim profunda influência. Desde que aqui cheguei, tenho pensado freqüentemente em Santillana, por ter sido ele o meu cicerone em Massachusetts quando de minha primeira visita a este país em 1960. Em lembrança de sua amizade, abro esta conferência sobre a exatidão na literatura invocando o nome de Maat, a deusa da balança. Tanto mais que Balança é o meu signo zodiacal.
“Antes de mais nada, procurarei definir o tema. Para mim, exatidão quer dizer principalmente três coisas: (1) um projeto de obra bem definido e calculado; (2) a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis: temos em italiano um adjetivo que não existe em inglês, icastico, do grego eikastikos; (3) uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação.
“Por que me vem a necessidade de defender valores que a muitos parecerão simplesmente óbvios? Creio que o meu primeiro impulso decorra de uma hipersensibilidade ou alergia pessoal: a linguagem me parece sempre usada de modo aproximativo, casual, descuidado, e isso me causa intolerável repúdio. Que não vejam nessa reação minha um sinal de intolerância para com o próximo: sinto um repúdio ainda maior quando me ouço a mim mesmo. Por isso procuro falar o mínimo possível, e se prefiro escrever é que, escrevendo, posso emendar cada frase tantas vezes quanto ache necessário para chegar, não digo a me sentir satisfeito com minhas palavras, mas pelo menos a eliminar as razões de insatisfação de que me posso dar conta. A literatura — quero dizer, aquela que responde a essas exigências — é a Terra Prometida em que a linguagem se torna aquilo que na verdade deveria ser.
“Às vezes me parece que uma epidemia pestilenta atingiu a humanidade inteira em sua faculdade mais característica, ou seja, no uso da palavra, consistindo essa peste da língua numa perda de força cognoscitiva e de imediaticidade, como um automatismo que tendesse a nivelar a expressão em fórmulas mais genéricas, anônimas, abstratas, a diluir os significados, a embotar os pontos expressivos, a extinguir toda centelha que crepite no encontro das palavras com novas circunstâncias.
“Não me interessa aqui indagar se as origens dessa epidemia devam ser pesquisadas na política, na ideologia, na uniformidade burocrática, na homogeneização dos mass-media ou na difusão acadêmica de uma cultura média. O que me interessa são as possibilidades de salvação. A literatura (e talvez somente a literatura) pode criar os anticorpos que coíbam a expansão desse flagelo lingüístico.”
Seis propostas para o próximo milênio — “Exatidão” — Tradução de Ivo Barroso. (Companhia das Letras, 1991)
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