Assim como há pessoas que se parecem muito com seus pais, há palavras cuja origem não oferece mistério algum, pois o falante percebe claramente o seu parentesco com algum velho radical da nossa língua. No fértil campo dos vocábulos ligados a animais, por exemplo, não temos dificuldade de ver, no verbo macaquear, a mania que tem o macaco de imitar os gestos dos humanos; em lagartear, todos enxergam o hábito feliz do lagarto que se estira para aproveitar o calor do sol; um cavalete só pode ter recebido esse nome porque seu apoio no solo lembra as patas de um cavalo, e gatuno é ladrão como um gato. No entanto, existem outros casos em que os falantes precisam ser alertados, sob pena de passar despercebida a ligação entre o vocábulo derivado e o primitivo. Poucos lembram da serpente quando ouvem falar na serpentina, companheira do confete; no entanto, é evidente que aquelas tiras de papel colorido receberam esse nome por causa da maneira espiralada com que se desenrolam; pelo mesmo motivo, chamamos também de serpentina aquele duto de cobre enrolado que é presença indispensável nos aparelhos de refrigeração. Veremos, abaixo, exemplos de vocábulos em que o animal primitivo está tão bem escondido que poucos de nós conseguimos enxergá-lo a olho nu.
músculo (de rato)
Vem do latim musculum, diminutivo de mus, muris (“rato”), a mesma fonte de onde proveio o famoso mouse do inglês e o nosso morcego (de muris caecus, “rato cego”, como os antigos o chamavam). Esse estranho nome de ratinho foi adotado pelo primitivos estudiosos de anatomia porque certos músculos, como os do braço e os da perna, ao se contraírem sob a pele, dão a impressão do volume de um pequeno rato que se move sob um pedaço de tecido.
boato (de boi)
Contrariando o dito que do boi só não se aproveita o berro, a palavra boato vem do latim boatus (“mugido, berro do boi”). No séc. XVII, o Padre Vieira ainda utilizava o termo para se referir a uma “gritaria; alvoroço”, significado até hoje conservado no espanhol. Pouco a pouco, no entanto, boato passou a designar aquela informação, geralmente mal intencionada e sem fundamento algum, que as pessoas vão passando umas para as outras, como reses de um grande rebanho que vão se comunicando por contigüidade.
piscina (de peixe)
Os apreciadores de horóscopo não estarão equivocados se enxergarem aqui uma derivada da palavra latina piscis (“peixe”), o nome clássico do signo dos Peixes, no Zodíaco, pois originariamente a piscina era apenas um grande reservatório para a criação de peixes (que denominamos, não por acaso, de piscicultura). Com a difusão dos famosos banhos públicos de Roma, o vocábulo passou naturalmente a designar os grandes tanques de água fria e quente em que os patrícios nadavam.
cínico (de cão)
Uma das mais controvertidas escolas filosóficas da Grécia antiga era a dos cínicos, que desprezavam as aparências e as convenções sociais e pregavam uma vida radicalmente simples e independente. Não há dúvida de que o nome desta escola vem do grego kyon, kynos (“cão”), embora haja duas teorias diferentes para explicar esta origem. Uma a relaciona com o modo de vida de Diógenes, o mais famoso seguidor desta filosofia, que vivia ao ar livre, comendo o que encontrava nas ruas e fazendo suas necessidades em qualquer lugar; ele próprio se intitulava “o cão”, e latia quando queria fazer críticas a alguém. A outra liga o nome ao ginásio denominado Cinosarges (“cão branco”), local onde lecionava Antístenes, o filósofo que fundou esta escola.
vacina (de vaca)
A palavra provém de vaca; na sua origem, era um adjetivo latino, presente na expressão variolae vaccinae — a “varíola das vacas”. O médico inglês Edward Jenner (1749-1823) desenvolveu a idéia de inocular as pessoas com o vírus dessa varíola animal, muito mais fraca que a humana, provocando assim uma reação que deixava o organismo imunizado contra a temida doença. Hoje, a Organização Mundial da Saúde considera extinta a varíola em nosso planeta, mas o termo vacina continua a ser usado para abranger toda a inoculação que produza anticorpos protetores contra qualquer outra doença.
porcelana (de porca)
A porcelana, fabricada na China desde o séc. VII, foi introduzida na Europa pelos mercadores venezianos e portugueses do Renascimento. A louça feita com esse material leve e translúcido logo substituiu os pesados utensílios de cerâmica, metal ou madeira até então utilizados nas mesas européias, sendo batizada de porcellana pelos italianos, devido à sua semelhança com a textura branca e lisa de uma concha conhecida como porcella (“porquinha”), numa analogia de sua forma com o órgão sexual da porca. No famoso relato de Marco Pólo, do início do séc. XIV, aparece o termo usado tanto para a louça, quanto para o molusco.
canário (de cão)
O canário, o mais apreciado dos pássaros de gaiola, conhecido na Europa desde o séc. XVI, recebeu esse nome porque foi trazido das Ilhas Canárias, hoje pertencentes à Espanha. No início da Era Cristã, Juba II, rei da Numídia, fez uma expedição a essas ilhas, onde teve a surpresa de encontrar numerosas matilhas de cães selvagens, de porte avantajado, levados para lá por possíveis viajantes do Norte da África. O fato o levou a chamar o arquipélago de Canariae Insulae (em latim, “ilhas dos cães”), o que faz com que canário seja da mesma raiz que canil ou canino.
gatilho (de gato)
Nas primeiras armas de fogo, fabricadas artesanalmente, decoradas com extremo requinte, a peça que segurava a pederneira (pedra que produzia a faísca para iniciar o disparo) costumava ser esculpida com a forma de cabeça de cão ou de gato. Desse costume proveio o nome das duas peças que manuseamos na hora de atirar: o cão e o gatilho. Embora originariamente ambos fossem nomes diferentes para a mesma coisa, pouco a pouco gatilho passou a denominar a parte em que se apóia o dedo para disparar o tiro, tecnicamente conhecida como disparador — e é nesse sentido que usamos a palavra metaforicamente, quando falamos de gatilho salarial.
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