Outro dia, um ilustre leitor (que não vou identificar, a pedido seu) me ligou para saber de onde veio o caractere &. Na ocasião, aproveitou para declarar sua revolta com a denominação de “e comercial”, que considera “muito chinfrim para um sinal tão bonito, tão artisticamente caligráfico!”, e pediu que eu investigasse se não poderíamos chamá-lo por outro nome. Como eu também sou fã do &, aceitei o desafio.
Este sinal é uma espécie de monograma que foi criado em Roma para representar a conjunção latina et (a mãe de nossa conjunção aditiva E). Nos quinze séculos que vão de sua criação, um pouco antes de Cristo, até o desenvolvimento dos caracteres tipográficos, no Renascimento, seu formato passou por dezenas de reformulações que o deixaram visualmente desvinculado do traçado original. Calígrafos medievais e renascentistas propuseram belíssimas variações para o seu desenho, mas o desenvolvimento da contabilidade (e, conseqüentemente, dos livros contábeis) forçou sua padronização e simplificação para o & atual. Assim mesmo, em algumas famílias tipográficas ainda é possível distinguir as letras que o compõem; quem tem no computador fontes como Book Antiqua ou Garamond, por exemplo, basta escrever o & em itálico para ver nitidamente a letra E mesclada à letra T:
Trata-se, mais tecnicamente, de uma ligatura — combinação do desenho de duas letras para formar um único sinal, usada para aumentar a velocidade de quem escrevia à mão. O & seria a mais famosa e bem sucedida ligatura desenvolvida por Marcus Tullius Tiro, secretário de Cícero, o grande político e orador romano; Tiro, que era um escravo liberto, criou milhares desses grafismos para poder registrar com maior rapidez os discursos e a correspondência ditada por seu senhor, estabelecendo um método de traçado conhecido até hoje como notação tironiana ou notas tironianas, empregado no Ocidente por mais de mil anos. Muitos dos intelectuais romanos tinham sempre a seu lado um escravo treinado nesta espécie de taquigrafia rudimentar; o admirável Plínio, por exemplo, sempre viajava acompanhado de seu notarius, devidamente equipado com todo o material necessário para tomar as anotações que ele lhe ditasse.
Como bem indica o adjetivo “comercial”, o & ocorre principalmente na denominação de pessoas jurídicas (Carvalho & Associados; Cardoso, Ribeiro & Cia.) ou nos nomes comerciais (Moët & Chandon; Forno & Fogão; Barnes & Noble); não foi por acaso que Eça de Queirós intitulou de “Alves & Cia” um de seus impiedosos romances sobre a falsa moral da burguesia lisboeta. No mundo acadêmico, ele também é empregado, nas referências bibliográficas, em obras escritas em co-autoria.
Em manuscritos medievais e em obras editadas antes do século XIX, o & podia aparecer combinado com a letra C, como forma equivalente à nossa abreviatura atual etc. (&c). A prática foi abandonada, mas, por causa disso, em certos meios ainda se acredita, erroneamente, que o nome do & seria “et cetera“.
O que varia de língua para língua é apenas a sua denominação: ampersand (Ing.), et (Esp.), perluète ou esperluète (Franc.), “e comercial” (Port.); o seu valor semântico, no entanto, é o mesmo em todas elas. Isso pode ser comprovado facilmente: quando o sinal é lido em voz alta, corresponde à conjunção aditiva em cada idioma específico. Por exemplo, uma referência como Marx & Engels será lida como “Marx and Engels” por um inglês, “Marx et Engels” por um francês, “Marx und Engels” por um alemão, “Marx y Engels” por um espanhol, e assim por diante.
Infelizmente, caro leitor e amigo, vamos continuar a chamá-lo pifiamente de “e comercial”. Mas nem tudo são decepções neste pequeno artigo: como deves ter notado na frase de abertura, eu emprego, com alegria, a forma caractere, por tanto tempo mantida no limbo das palavras que esperam aceitação. Os autores tradicionais (os mais caturras, é claro) defendiam, para os símbolos tipográficos, o singular caráter e o plural caracteres, os mesmos termos usados pela Psicologia, já que se trataria do mesmo vocábulo empregado com sentidos diversos. Na prática, no entanto, a consciência dessa origem comum desapareceu completamente, e os falantes começaram o lento trabalho de contribuir para o aperfeiçoamento do idioma: ao lado do esdrúxulo par caráter:caracteres (com esse raríssimo plural desviante, que altera a posição da sílaba tônica), foi-se solidificando a oposição caractere:caracteres, já consagrada pelo Houaiss, pelo Aurélio e pelo Caldas Aulete, as atuais estrelas de nossa lexicografia. Caractere é hoje a forma preferível para a Informática e para as ciências da linguagem.
(Coluna O prazer das palavras — Jornal Zero Hora, 26-08-2006)