A moda, neste inculto Brasil de hoje, são as etimologias baratas. Nos últimos dois anos, mais de vinte livros sobre o tema foram lançados com sucesso (não menciono os títulos porque não faço propaganda de produto ordinário), escritos quase sempre por amadores, autodidatas ou oportunistas, que emitem suas opiniões sobre a origem das palavras com aquela segurança invejável que só adquire quem tem uma sólida ignorância. Há um ou outro autor sério, estudioso, que faz trabalho honesto, pesquisando em dicionários e embasando suas afirmações com a obra de bons escritores — mas essa seriedade e esse rigor, que para mim são virtudes, são defeitos para o grande público, que prefere a explicação fácil e engenhosa, pouco se lhe dando se foi ou não inventada.
Com a rapidez de um vírus, essas etimologias de R$1,99 se espalham pela internet e dali chegam aos blogues, aos jornais e às revistas, de onde serão recolhidas novamente por esses catadores de lixo, que irão reciclá-las em novos livros sobre a “origem divertida das palavras”. É um ciclo infernal! O típico autor dessas obras tem escassa ou nenhuma formação lingüística, o que o deixa mais à vontade para escrever a barbaridade que lhe der na telha. Como não sabe como funciona uma língua humana, acha plausível (!) que o vocábulo forró tenha nascido da recepção errada de “For all” (“para todos”, em Inglês, que soa mais ou menos como /foróu/), que assinalava, nas bases americanas no Nordeste, as festas abertas à comunidade — e se alguém lhe ensina que se trata, na verdade, de uma simples redução de forrobodó (“festança”), vocábulo já encontrável no séc. XVIII, ele torce o nariz e exige que o convençam disso! Como se diverte com esses equívocos com palavras desconhecidas, afirma ingenuamente que a lhama recebeu esse nome por causa de um mal-entendido similar: diante do conquistador espanhol que apontava para o simpático animalzinho e perguntava — decerto aos gritos e com feroz carantonha — “Como se llama?”, algum amedrontado antepassado de Evo Morales, à guisa de resposta, teria apenas balbuciado a última palavra da pergunta — “Llama” — como se fosse o comportamento normal de qualquer ser humano repetir o final da frase quando o interlocutor fala uma língua estrangeira.
Como nosso autorzinho não estudou Latim, que já é coisa ultrapassada, sente-se livre para dizer que enfezar significa “estar cheio de fezes”, ignorando que vem de infensare, “opor-se a alguma coisa com vigor, hostilizar”. Pior é quando ele próprio resolve arriscar uma origenzinha histórica, falsa como tudo o que ele vende: é o caso de aluno, cuja etimologia de araque vem sendo apresentada com sucesso em muitos seminários pedagógicos por aí. O termo viria de *luno (que significaria “luz” — só Deus sabe em que língua!), e a-luno seria aquele que está sem luz, à espera de que o professor o tire da obscuridade em que vive — o que tornaria o termo politicamente incorreto (!) para aqueles que defendem uma gestão democrática da escola, sendo mais adequado substituí-lo por estudante... É sinistro ver como uma idéia tão rasteira se alastrou entre muitos dos profissionais encarregados da educação dos pobres brasileirinhos! Mas será que não existe uma boa alma ali que se nime a abrir o dicionário do Houaiss para ver que aluno vem do Latim alumnus, “criança de peito, menino, aluno, discípulo”, derivado de alere, que significa, entre outras coisas, “desenvolver, nutrir, alimentar, criar, fortalecer”?
O nosso etimólogo amador começa, agora, a “corrigir” o passado. O velho provérbio “Quem não tem cão caça com gato” está errado; o certo, diz a sumidade, é “caça como gato”, isto é, sozinho — contrariando todas as obras de paremiologia publicadas até hoje e deixando o próprio Machado com cara de bobo, por escrever “com gato”. Tem mais: não é “Quem tem boca vai a Roma”, mas sim “vaia Roma”… Essa é de cabo-de-esquadra! E o que vamos dizer aos franceses (“Qui langue a, à Rome va“), aos espanhóis (“Preguntando se va a Roma“) e aos italianos (“Chi lingua ha, a Roma va“)? E outra coisa: nas coxas viria do hábito de moldar a telha de argila nas coxas dos escravos, o que a deixava com forma irregular! Que descoberta! Eu pensava, maliciosamente, que era expressão proibida à mesa de refeição porque indicava o velho sexo intercrural (ou interfemoral), já tão praticado na Grécia, conceito muito conhecido pela minha geração mas que os jovens atuais simplesmente não entendem (“Se chegavam na portinha, por que não iam adiante?”), e que fazer nas coxas era fazer algo afobadamente, apressadamente, deixando malfeito e incompleto o que poderia ser melhor — bem do jeito como vem sendo praticada essa etimologia de meia-pataca.
[Coluna O Prazer das Palavras — publicado no jornal ZH em 6/01/2007]
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