Em qualquer idioma, os vocábulos que designam as partes do nosso corpo são os que mais derivados produzem. Termos como cabeça, olho, boca e braço contribuem muito mais para o léxico do que termos como tijolo, machado, prato ou camisa; como se fossem os ingredientes básicos da cozinha da língua portuguesa, originam dezenas de outros vocábulos e participam de uma enorme quantidade de expressões usuais. Em muitos casos, fica fácil enxergar a relação dos vocábulos derivados com o seu primitivo; em outros, no entanto, a caprichosa evolução lingüística esconde tão bem o processo que só um olho mais atento pode percebê-la. Não é difícil ver o parentesco que existe entre o pé e o pedal, a pegada e o pedestal; com um pouco mais de estudo, também enxergamos o pé em palavras mais eruditas como bípede, quadrúpede e octópode. Quem, no entanto, reconhece a sua presença em impedir? Quantos sabem que esse verbo significava “prender os pés” e, conseqüentemente, “tolher, travar”? E aqueles que se surpreendem ao descobrir que os portugueses chamam as meias masculinas de peúgas, já se deram conta que, tanto lá como aqui, elas são usadas nos pés? Veja, abaixo, alguns vocábulos que poucos reconhecem como descendentes de pé:
peão — Vem de pedo, pedonis, e significava inicialmente o soldado “que servia a pé, sem cavalo”. Era a infantaria, como até hoje está representado no jogo de xadrez. O Dicionário de Morais (1813) acrescenta-lhe o significado de plebeu, ou “o que era de raça não-fidalga”: havia homens peões e homens nobres. Por influência do Espanhol, onde o termo também é usado, passou a designar o trabalhador humilde, não-especializado, das fazendas e das obras de construção civil. Como o termo foi muito utilizado para os condutores de tropas de gado, acabou indicando, no universo dos rodeios, os que montam em animais bravios, para amansá-los — o que não deixa de ser irônico, considerando sua origem.
pedágio — De pedaticum, outro derivado do Latim pedis; significava, originalmente, o direito de pôr o pé, de pisar em determinado lugar, e correspondia à taxa cobrada sobre pessoas, animais ou mercadorias para passar por uma ponte ou por uma estrada. No Italiano, entrou como pedaggio. Assim como o péage do Francês, nós também temos a forma peagem, pouco usada. O sentido primitivo foi esquecido e hoje só se cobra pedágio de veículos motorizados.
pedigree — Do Inglês pedigree (“genealogia; linhagem”), que foi buscar no Francês antigo pié de grue (“pé de grou” — o grou é uma ave de perna e pescoço comprido, com a silhueta semelhante à de uma garça; não existe no Brasil). A pegada dessa ave, com três traços retos, assemelha-se ao grafismo que era desenhado nos livros de linhagem para representar os ramos de uma árvore genealógica. O termo chegou a ser usado para pessoas, mas hoje refere-se preferencialmente a animais.
pedestre — O Latim pedis (“pé”) produziu o derivado pedester, “que está com os pés no chão; que anda a pé”. Usado na Idade Média para designar principalmente o soldado desmontado, de infantaria, o termo pedestre logo passou a abranger qualquer pessoa que andasse a pé. No séc. XVIII, o adjetivo foi aplicado também às estátuas que representassem o personagem em pé (por oposição à estátua eqüestre (“a cavalo”) e sedestre (“sentado”). Hoje designa basicamente os que andam a pé pelas ruas, por oposição aos que estão nos automóveis e nos ônibus.
antípoda — É um composto do Grego anti (“oposto”) e podos (“pé”), significando, literalmente, “aqueles que têm os pés opostos aos nossos” — numa clara referência às pessoas que vivem do outro lado do planeta, porque a planta de seus pés estão diametralmente opostas à planta dos nossos. Na forma latinizada antipodes, o termo ingressou no Ocidente em meados do séc. XIV, confirmando a existência, desde a Grécia Antiga, da teoria da redondeza da Terra, que só seria comprovada por Colombo em 1492.
pódio — Do Grego podion (“pé pequeno; pezinho”). Em Roma, chamava-se de podium a larga mureta que circundava a arena de um anfiteatro, formando uma plataforma sobre a qual se colocavam filas de assentos para os nobres e privilegiados. No vocabulário arquitetônico do Renascimento, o termo foi usado para designar o degrau que suporta uma fileira de colunas. Atualmente, chamamos de pódio tanto o pequeno estrado em que atua o maestro de uma orquestra, quanto a conhecida plataforma de três degraus em que se apresentam os vencedores de uma competição.
tripudiar — O Dicionário de Morais (1813) explica como “bailar batendo com os pés, ou dando sapateadas”. Vem do Latim tripudium, uma dança do calendário religoso de Roma, dedicada a Marte, o deus da Guerra, pelos sacerdotes Sálios. Os dançarinos davam seqüências de três saltos, sendo dois seguidos com o mesmo pé; por extensão, denominou-se de tripúdio qualquer dança saltitante de alegria, especialmente quando é para comemorar alguma vitória. Hoje o termo adquiriu uma carga pejorativa, porque tripudiar sugere desrespeito e zombaria para com o adversário vencido; no futebol, o termo se aplica como uma luva para aquela dancinha que os jogadores fazem depois de um gol.
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