Como tive a oportunidade de explicar no artigo Os Nomes do Peru, nada como o olhar inocente de uma criança para nos fazer enxergar detalhes que estiveram despercebidos diante de nosso nariz a vida toda. Um inteligente brasileirinho de seis anos perguntou se eu sabia por que as cartas de copas traziam a figura de um coraçãozinho. Embatuquei, ao me dar conta de que não tinha a menor idéia, também, por que o naipe de paus era representado por aquela florzinha, e as espadas por uma ponta de flecha. Nunca liguei muito para carta de baralho, mas agora se tratava de palavras, e tratei de me instruir.
Adolfo Coelho, no clássico Questões de Língua Portuguesa (Porto, 1874), veio socorrer minha ignorância: copas, paus, espadas e ouros referem-se às figuras que identificam os naipes do baralho espanhol, que ainda hoje pode ser encontrado nas mãos habilidosas das cartomantes e das ciganas. As cartas de copas trazem a figura de taças (em Esp., copa); as de paus trazem a figura de bastões ou cajados (em Esp., basto; comparem com o Port. bastão); as de ouros trazem a figura de moedas de ouro; finalmente, as de espadas apresentam, previsivelmente, a figura de gládios (ou espadas curtas).
Depois do Renascimento, contudo, começa a difundir-se por toda a Europa o modelo de baralho francês, que hoje impera em todos os cantos do planeta, com os naipes representados da forma que conhecemos: coeur (como o nome diz, um coração); pique (uma ponta de lança); trèfle (um trevo); carreau (um quadrado, que passou depois a losango). Quando as cartas francesas, muito mais práticas, entraram em Portugal, nossos antepassados, em vez de darem aos novos naipes o nome correspondente do Francês, preferiram aplicar a eles os nomes do baralho espanhol, a que já estavam habituados. Por isso temos esse descompasso entre o nome e a figura: as copas não têm mais taças, mas corações; as espadas nâo têm mais gládios, mas pontas de lança; os paus não têm mais bastões, mas trevos; os ouros não têm mais moedas, mas losangos.
Na verdade, o desenho do baralho atual incorpora ainda traços de outra língua ocidental: o Inglês. Os desenhistas ingleses introduziram um importante aperfeiçoamento no modelo primitivo, concebendo um desenho em que todas as cartas (especialmente as figuras) trazem sua imagem invertida, a fim de permitir que qualquer carta na vertical esteja em posição de jogar. Por isso, entraram no modelo atual as letras K, Q e J, iniciais que correspondem, respectivamente, às palavras inglesas King (o rei); Queen (a rainha, que nós chamamos de dama); e Jack (o valete, que algumas regiões do Brasil e de Portugal chamam também de conde ou cavalo).
Quem diria que eu ia aprender alguma coisa nas cartas de um baralho! Como o meu pequeno consulente ainda não lê, acho que vou ter de explanar tudo isso pessoalmente; duvido, no entanto, que ele aceite esse negócio de chamar corações de copas e trevinhos de paus.
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