Caro professor: no Tratado da Versificação Portuguesa, de Pedro José da Fonseca, impresso em Lisboa, em 1777, observo que a letra S minúscula invariavelmente tem a forma de algo como o nosso atual F, enquanto a maiúscula é igual à que usamos (“S”). “Sílaba”, “assim” e “escorregar”, por exemplo, aparecem impressos como “fillaba”, “affim” e “efcorregar”; no entanto, uma palavra como “antes” aparece com sua forma atual. Qual a história dessa evolução?.
Gil Corrêa F. — Porto Alegre
Meu caro Gil: como bem notaste, estamos diante de um episódio da evolução dos caracteres tipográficos. Até o início do século XIX, a letra S costumava aparecer em três formas distintas, nos livros impressos: (1) quando maiúscula, era idêntica à que usamos até hoje (“S”); (2) quando minúscula, no final das palavras, era também idêntica à atual (“s”); (3) finalmente, quando minúscula, no início ou no meio da palavra, era representada pelo “S longo”, que se assemelhava muito ao “f”, com a importante (para eles, é claro; para nós, é quase imperceptível) diferença de que o tracinho horizontal não cortava totalmente a haste vertical, como no caso do “f” — algo assim como uma cruz que só tivesse o braço direito. Uma palavra como sucessos, portanto, seria impressa mais ou menos como “fuceffos”.
Não podemos esquecer a forte tendência que os caracteres tipográficos tinham de imitar os traçados das letras manuscritas. Embora tenha sido abandonado pela imprensa (alguns editores alemães ainda o empregam), os especialistas em caligrafia asseguram que o traçado desse “S longo” era muito mais rápido que o do S normal, que exige um maior número de movimentos da pena. É evidente que essa dupla representação para o S minúsculo não poderia sobreviver; primeiro, por contrariar os princípios de um sistema tão econômico quanto o alfabeto; depois, por favorecer, por sua semelhança com o “f”, equívocos de leitura, que iam do ridículo ao obsceno. Por alguns séculos, várias gerações de alunos ingleses riram maliciosamente com a famosa frase de Shakespeare, na peça A Tempestade: “Where the bee sucks, there suck I”; para os que não entendem Inglês, seria algo tão medonho quanto um artigo que falasse das propriedades da soda …
Por fim, como curiosidade, lembro que Sherlock Holmes conhecia bem esse caractere; em O Cão dos Baskervilles, ao determinar a idade de um manuscrito, o famoso detetive comenta com o Dr. Watson, seu fiel escudeiro: “Você pode observar, Watson, o uso alternativo do S longo e curto. Essa é uma das várias indicações que me permitiram fixar a data”. Talvez muitos não tenham entendido essa frase, quando leram o livro. Abraço. Prof. Moreno