Prezado Doutor, com o grande sucesso do uso do computador para se redigir textos, tenho observado que raramente ocorre a separação das sílabas das palavras (translineação), pois os programas se incumbem de ajustá-las ou passá-las para a outra linha, com exceção das formas pronominais. Neste caso, como proceder quanto ao traço de separação? Deve-se colocar apenas um traço de separação no final da linha ou há obrigatoriedade de colocação de um traço no final da linha e outro no início da linha seguinte? Onde encontrar sobre este assunto? O que está contido na NGB (Nomenclatura Gramatical Brasileira) e na ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas)? Tenho uma amiga que é professora Língua Portuguesa aposentada, formada há trinta anos, ex-aluna de Evanildo Bechara e Celso Cunha, que afirma ter aprendido com eles a obrigatoriedade do uso do traço de separação no final da linha e também no início da próxima linha. Ela está correta? Marilema P. — Rio de Janeiro
Prezada Marilema: não existe tal regra na NGB, que só enumera os títulos e as divisões da Gramática (jamais se ocupou de ortografia). ABNT, por sua vez, emite apenas normas técnicas; não tem competência para discutir ortografia e, sejamos justos, jamais tentou mesmo. A autoridade é a Academia Brasileira de Letras, através dos seus Vocabulários Ortográficos, editados exatamente para mostrar, concretamente, a aplicação das regras dos acordos assinados entre o Brasil e os demais países lusófonos. Atualmente, escrevemos dentro dos parâmetros do Acordo de 1943, com a mínima modificação introduzida pelo Acordo de 1972. Nada houve desde então, a não ser tentativas que, se os deuses me ouvirem, continuarão infrutíferas. O Brasil não precisa mais de reformas ortográficas. [quando escrevi essas linhas, mal podia suspeitar que vinha chegando uma desastrada reforma, aos trancos e barrancos…]
Quanto à tua dúvida específica, o Acordo de 1943 não diz nada sobre ser “aceitável” ou não a repetição do hífen (ou traço-de-união) no início da nova linha, se o hífen de palavras compostas e de pronomes oblíquos for o último caráter da linha anterior. No entanto, no texto do próprio Acordo ocorrem várias coincidências desse tipo, e em nenhuma delas o hífen foi repetido — o que implica dizer que, ao menos implicitamente, o uso oficial não nos obriga a esta prática.
Esse costume tinha vários defensores quando o texto, manuscrito ou datilografado, era entregue ao tipógrafo para ser composto. Como as linhas do original e as linhas do texto impresso raramente coincidiam, o autor, por precaução, podia usar o hífen repetido para ter certeza de que o vocábulo seria grafado corretamente na hora da composição. Vamos imaginar que, no meu texto original, os vocábulos contraproposta e contra-ataque tivessem de ser divididos por translineação, e, em ambos os casos, as linhas terminassem exatamente na divisa do prefixo (contra-). Como iriam começar as linhas seguintes? O normal seria iniciar uma por proposta e a outra por ataque — e assim eu faço, e assim faz praticamente todo o mundo que escreve em Português hoje em dia. Naquela época, no entanto, em que existia a figura intermediária do tipógrafo, havia o risco dele não saber distinguir se aqueles hifens eram apenas os hifens normais da translineação (como em contraproposta), ou se eram hifens internos de um vocábulo composto (como em contra-ataque). Quando esses vocábulos caíam no meio da linha impressa, o tipógrafo era obrigado tomar uma decisão sobre a forma de grafá-los; dependendo da sua cultura ortográfica, poderia cometer erros como *contra-proposta ou *contraataque. Por isso, para evitar esse equívoco (não muito provável, porque os tipógrafos geralmente sabiam muito mais ortografia que a maioria dos autores), eu poderia repetir o hífen no início da linha no caso de contra-ataque (…contra-/-ataque). Muitos autores adotavam esse mecanismo de precaução também com o hífen dos pronomes oblíquos, para evitar confusão em pares como ver-te e verte, impor-te e importe, alinha-vos e alinhavos, ter-nos e ternos, ver-me e verme; etc.
Hoje não vejo muita razão para continuar fazendo isso. O recurso de justificação do texto nos modernos processadores eliminou consideravelmente a partição das palavras no final de linha e, na maioria das vezes, a eventual confusão que se pretendia combater com esse hífen repetido fica desfeita, de modo muito mais eficiente, pelo contexto (ver-me e verme é de amargar!). É claro que nada proíbe o uso desse hifenzinho repetido, Marilema, assim como ninguém proíbe o uso daquelas polainas do Tio Patinhas — mas ambos são traços decididamente anacrônicos.
Deves ter percebido que o debate é sobre a possibilidade de repetir o hífen, mas não sobre a sua obrigatoriedade, que nem entra em cogitação. A memória deve estar pregando uma peça à tua amiga; jamais Bechara ou Celso Cunha diriam que esse hífen duplo é obrigatório. Abraço. Prof. Moreno
DEPOIS DO ACORDO DE 2009 — Parece que o novo Acordo está decidido a revogar o que já estava consolidado desde 1943, mesmo que não haja um motivo que justifique esse rompimento. Eles não erram nunca, quando se trata de acertar no alvo trocado! Pois não é que o texto atual considera obrigatória essa prática de repetir o hífen no início da linha seguinte? Estranho muito que ressuscitem um procedimento tão retrógrado, principalmente se considerarmos que o Acordo elimina o trema e vários acentos sob a alegação (legítima, aliás) de que o sentido e o contexto eram suficientes para desmanchar as eventuais dúvidas do leitor — o que deveria ser razão suficiente para não repetir esse hífen bizarro no início da linha. Outra coisinha: como o computador praticamente sepultou máquina de escrever, eu gostaria que as sumidades que elaboraram este Acordo de caracacá nos ensinassem como repetir o hífen, nesses casos, usando um processador de texto como o Word. Vou sentar aqui e ficar esperando…