Muitas palavras que o Português foi buscar no Árabe trazem, em seu início, o artigo definido al, que nossos antepassados ibéricos, na sua inocência lingüística, pensavam fazer parte do próprio corpo do vocábulo. Daí veio a primeira sílaba de álcool, de almanaque ou de Alcorão (no Inglês e no Francês, Koran); assim também nasceu a álgebra, que vem de al-jabr, “a reunião de partes em um só todo”. Seu ingresso no mundo da Matemática se deu com o livro Al-jabr w’al muqabalah, publicado em 825 d.C. pelo matemático árabe Al Khwarizmi (de onde nos veio, também, os vocábulos algarismo e algoritmo). A palavra jabr (“recolocar no lugar”) referia-se metaforicamente à transposição dos termos negativos de um lado da igualdade para o outro: ao se equacionar x-2=12 como x=14, era como se o lado esquerdo tivesse sido “consertado”.
O estimado leitor estará pensando, quiçá, que entrou na sala errada; o cartaz anunciava algo sobre Medicina, mas o filme (ou “a fita”, como diria minha saudosa avozinha) se passa no deserto, num cenário que parece mais adequado para o Homem que Calculava, de Malba Tahan… Pois não se assuste, que continuamos dentro do tema iniciado na coluna anterior. Estamos falando, na verdade, da cirurgia, palavra que nos veio do Grego através do Latim. Pelos elementos que acompõem — kheir (“mão”) e ourgós (de érgon, “trabalho”) —, o vocábulo cirurgia significava, literalmente, “trabalho feito com as mãos”, e se aplicava tanto ao artesão quanto ao cirurgião, o qual, na concepção antiga, não era necessariamente um médico. Este (chamado de iatros – daí o pediatra, o psiquiatra, entre outros) era o que detinha o saber teórico, enquanto o cirurgião, profissional de posição inferior, trabalhava manualmente, curando feridas e fraturas. Como resumiu um autor espanhol, o médico vendia seu saber; o cirurgião, o seu trabalho.
Durante séculos, as práticas cirúrgicas foram executadas pelos barbeiros, que, além de fazer a barba e cortar o cabelo aos clientes, também sabiam suturar ferimentos, fazer sangrias e extrair dentes. O dicionário de Morais (1813) ainda define cirurgia como “a parte da Medicina que ensina a curar feridas, chagas, tumores, deslocações; e as operações de abrir e cortar membros, &tc. do corpo humano” (note-se, de passagem, como se enganam os que consideram o “&” como um símbolo para o etc.; aqui fica claríssimo que ele corresponde apenas ao “e“). Pouco a pouco, porém, o avanço da Medicina tornou impossível essa divisão de tarefas, tornando-se impensável, como sabemos, um cirurgião que não tenha a formação médica completa.
Voltamos, assim, à nossa álgebra. Quando os árabes levaram o vocábulo al-jabr para a Península, seu significado também abrangia a arte de reunir ossos quebrados ou deslocados. Bluteau, em seu famoso dicionário, define álgebra como “reparação ou conserto de ossos quebrados ou deslocados”, e algebrista como “o que exerce a arte de consertar ou restituir a seu lugar ossos deslocados ou quebrados”. Assim aparece no Quixote, no Espanhol, e na Carta de Guia dos Casados, de Francisco Manuel de Melo. Nos dois países era comum estabelecimentos de barbeiro ostentarem letreiros anunciando “algebrista e sangrador“, depois substituídos simplesmente por “cirugião“.
Sempre que menciono o nome de Bluteau, algum leitor me escreve invejando o fato de eu ter à mão um exemplar do famosíssimo Vocabulário Português e Latino, mais difícil de encontrar do que cabeça de bacalhau; publicada em edição única, em dez volumes, no início do séc. XVIII, esta obra vale hoje uma pequena fortuna no mercado de bibliófilos, sem dúvida. No entanto, fiquem sabendo os interessados que já raiou a liberdade no horizonte do Brasil: por uma elogiável iniciativa de José Mindlim e da USP, o Vocabulário agora está à disposição de todos nós AQUI), lado a lado com o Dicionário da Medicina Popular, do famoso Chernoviz — e, o que é melhor ainda, dotado de um sistema de busca que reconhece tanto a grafia original quanto a moderna (podemos chegar a paranympho digitando simplesmente paraninfo). Nós, os apaixonados pelas palavras — entre os quais faço questão de incluir o doutor Nelson Porto, médico com alma de filólogo, com quem costumo trocar um dedo de prosa sobre dicionários e etimologias —, ganhamos assim, graças à internet, o acesso a um mundo que só conhecíamos de ouvir falar.
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