Às vezes eu me surpreendo (ingenuidade a minha!) com a veemência com que certas perseguições lingüísticas são desencadeadas em nosso pouco culto país. Vindas do nada, ondas de intolerância atravessam o pequeno espaço onde se discute nossa língua, banindo certas formas ou corrigindo outras já consagradas. “Não pode ser risco de vida, só pode ser risco de morte“, vociferam uns; “não existe televisão A cores; o que temos é televisão EM cores”, berram outros. “Está na hora DE O governo assumir”, exigem outros tantos; é errado dizer “está na hora DO governo assumir”, porque sujeito não pode estar regido por preposição (errados estão eles, mas isso fica para outro artigo).
E assim segue o desfile de bobagens pregadas em tom carrancudo e pretensamente erudito, sempre repressivo, policialesco, onde não posso deixar de perceber sempre, ao fundo, aquele espírito vingativo e invejoso das almas pequenas. Seus agentes são incrivelmente ativos, espalhados por toda parte: na área jurídica (já foi mais pretensiosa; agora começa a perceber, aos poucos, que a Língua Portuguesa não é assunto de sua competência), na área médica, na área política (pois não é que temos deputados federais metendo a colher torta em nosso idioma?), na imprensa — e como tem jornalista por aí dissertando sobre a Língua Portuguesa! E manual de redação de jornal servindo de base para estudos do idioma! Mas quem são eles, meu deus! Não se enxergam, não? Deveria ser obrigatório, em qualquer escola de jornalismo, o estudo do vocábulo ultracrepidário.
É claro que todos nós, independentemente do que fazemos para viver, podemos trazer valiosas contribuições aos estudos do Português — o médico, o jurista, o geólogo, o dramaturgo, o publicitário, até o jogador de futebol, todos podem iluminar um uso especial que ainda não foi registrado nos dicionários gerais, ou o significado de expressões técnicas, pertencentes a uma terminologia específica — mas cada um na sua competência. O açougue que entrega a carne na casa do cliente faz entrega a domicílio; nossos censores de plantão querem que seja “em domicílio”, por analogia com “em casa”. “Não se entrega a casa; logo, não se entrega a domicílio“. O professor Sírio Possenti, da Unicamp, acerta um direto no queixo desse raciocínio de jerico: se aqui está operando uma analogia, quem disse que o pólo correto é “entrega em casa“? Por que não considerar “a domicílio” como a base do modelo, e considerar errado “entrega em casa“? A resposta dos gramatiquinhos seria, indubitavelmente, “porque sempre se disse e se escreveu, no Brasil, em casa” — o que viraria imediatamente contra eles, porque também sempre se disse e se escreveu no Brasil “a domicílio“.
Não existe obrigatoriedade de uso da mesma preposição em situações de paralelismo semântico: volto A pé, volto A cavalo, mas volto DE carro, volto DE avião. Além disso, há várias estruturas sintáticas em que o A e o EM são intercambiáveis: a tempo, em tempo; em busca de, à busca de; na falta de, à falta de; em favor de, a favor de. E daí? Ninguém prometeu que a língua seria simétrica e lógica; ela é como ela é, nos seus secretos (mas sempre sábios) desígnios. E com o verbo levar? Leva-se EM casa, mas leva-se A domicílio (os portugueses usam entrega ao domicílio, levar ao domicílio).
Na verdade, a domicílio e em domicílio são duas iguarias totalmente diferentes que a língua está cozinhando. A preposição A que usamos em a domicílio é a mesma preposição que o Português geralmente seleciona para indicar movimento. Por isso, entrega-se, leva-se a domicílio. Assim confirmam Houaiss e Celso Pedro Luft, só para citar esses dois bambas. A preposição EM, por outro lado, é preferida para indicar permanência, local onde se está. O Decreto nº 94.406, que regulamenta o exercício de Enfermagem, diz que ao parteiro incumbe “assistir ao parto normal, inclusive em domicílio“. A Lei de Fiscalização de Entorpecentes, de 1938, diz, no Art. 28, que “não é permitido o tratamento de toxicômanos em domicílio“. Nossa Constituição fala, no Art. 139, V, em “busca e apreensão em domicílio“. O Art. 83 da CLT dispõe que “é devido o salário mínimo ao trabalhador em domicílio, considerado este como o executado na habitação do empregado ou em oficina de família”. E assim por diante. Agora sim: este em domicílio é genuíno; aqui realmente seria um absurdo oceânico tentar usar a preposição A. O trabalhador EM domicílio, uma das modalidades crescentes de emprego deste século, realiza suas tarefas ali onde mora; um trabalhador A domicílio iria realizar seu trabalho no local determinado por quem contratasse seu serviço.
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