Prezado Doutor: eu só uso má-oclusão nos meus textos, mas vejo que muitos de meus alunos preferem maloclusão. Como pretendo escrever um artigo condenando esta última forma, peço-lhe uma orientação teórica sobre o assunto.
Professor de Odontologia — São Paulo
Prezado professor: quem te responde não sou eu, mas o grande mestre Luft, que já fez essa pesquisa há muito tempo. Como ele explica muito bem, maloclusão foi trazida prontinha do Inglês malocclusion, da mesma forma que malformação nos veio do Francês malformation. Aos poucos, surgiu uma teoria de que teríamos de readaptar os elementos morfológicos estrangeiros (mal + occlusion), substituindo-os por elementos vernáculos. Ora, como não temos a hipótese de um advérbio (“mal”) modificar um substantivo (“oclusão”), alguns sugeriram empregar o adjetivo como primeiro elemento da composição: *má-oclusão, análoga a mau-humor, má-fé, etc. Ora, diz mestre Luft, “contra tais reanálises e reformulações vernáculas pesa a tendência universalizante das nomenclaturas técnicas. Na ciência e na técnica a humanidade aspira a uma linguagem uniforme, comum. Soluções particulares, nacionais, são indesejáveis”. Por essa mesma razão, acrescenta ele, o termo internacional infarto é preferível ao doméstico enfarte, derivado regressivo de nosso verbo enfartar.
Levanto ainda outra dúvida: mesmo que preferíssemos adotar a solução purista, o vocábulo maloclusão estaria mal formado? Parece que não. Essa desagradável sensação de que estamos juntando um advérbio a um substantivo não tem razão de ser. No Inglês, mal de malocclusion não é advérbio, nem adjetivo; em outras palavras, ele não pode ser interpretado como um elemento independente, pertencente a uma classe específica. Ele é apenas uma forma presa, um radical prefixável, que alguns autores simplesmente classificam como prefixo. No caso do Francês malformation ainda se poderia objetar que repugna juntar um advérbio com um substantivo. A objeção não cabe aqui, no entanto, porque a análise lingüística que estão fazendo é completamente equivocada: não se trata da união de [mal+formation], que seria esquisita também no idioma de Balzac, mas sim de [malformé+ation] — da mesma forma que malcriação não é uma “criação que seja má” (porque então deveria ser “má-criação”, como querem alguns dicionaristas), mas sim a ação típica de alguém que é malcriado.
Não estamos falando de hipóteses, caro professor, mas sim de um processo extremamente produtivo em nosso idioma: a formação de substantivos com a estrutura [advérbio+verbo+sufixo]: maledicência, malevolência (e benevolência), malfeitoria (benfeitoria), malversação (alguém vai defender “*má-versação”?), e por aí vai a valsa. Podes encontrar essa argumentação, com mais detalhes, no livro O romance das palavras, de Celso Pedro Luft (São Paulo, Ática, 1996— p.132-5). Eu acrescento outro detalhe para que penses: e o plural? Se for *má-oclusão, vais ter *más-oclusões, obrigatoriamente — e não me parece ser esse o espírito desse vocábulo. É claro que, como não canso de alertar, o usuário sempre é livre para escolher as formas que quer empregar. No entanto, pediste minha opinião técnica, que é essa exposta acima. Podes continuar a usar a forma *má-oclusão, se preferires, mas não te aconselho a combater a grafia maloclusão, que tem muito mais razão de existir. Abraço. Prof. Moreno
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