“UM champanha GELADO” ou “UMA champanha GELADA”? Existe uma forma correta, ou tanto faz dar na cabeça ou na cabeça dar?
Um publicitário gaúcho está preparando material promocional para um bar sofisticado e quer saber como deve se comportar com relação ao termo champagne. Para começar, prezado leitor, trata de usar a forma há muito já aportuguesada, champanhe ou champanha (prefiro esta última). Quanto ao gênero, recomendo o feminino: “uma champanha bem gelada“. Não vejo mais razão para aquela sanha caturra de dizer que o vocábulo é masculino porque se trataria do “vinho champanha”; acho impossível conviver com uma concordância de pesadelo do tipo “um champanha bem gelado“, e tenho argumentos lingüísticos que me apóiam.
Dizes que teus professores de Português passaram a vida inteira a dizer que champanha é masculino? Pois temos algo em comum: os meus também. No entanto, ao longo da minha carreira, fui ficando cada vez mais convencido de que o gênero deste vocábulo, no Brasil, passou a ser feminino. Não posso precisar quando isso aconteceu, mas sei que aconteceu. Como sabes, atribuímos um gênero a todos os nossos substantivos. Os que correspondem a seres sexuados (macaco, cantor, mestre, leão) geralmente apresentam uma forma masculina e uma feminina; nesses casos, o gênero combina biologicamente com o sexo. O gênero dos demais substantivos, contudo, é arbitrário: eles se distribuem entre masculinos e femininos segundo critérios imponderáveis. Se compararmos os pares teste e tosse, dia e pia, pau e nau, lápis e cútis, nariz e cicatriz, talismã e avelã, podemos ver que nada existe nesses vocábulos que justifique sua diferença de gênero. Uns são femininos e outros são masculinos simplesmente porque assim se fixaram no nosso léxico. Estudos modernos mostram que os falantes, ao atribuir o gênero aos vocábulos que seriam neutros (se nós tivéssemos isso, em Português), sofrem principalmente a influência do perfil fonológico — o que explica por que, como comentou Borges com ironia, temos um mísero alfinete masculino ao lado de uma grande lança feminina. O fato de aumentar a preferência pela forma champanha, com o A final, pressiona a palavra naturalmente para o feminino, pois 99% dos vocábulos em –anha são deste gênero: aranha, barganha, cabanha, castanha, entranha, façanha, montanha, picanha, etc.
Isso não é novidade: quando a soja foi introduzida no Brasil, defendia-se o gênero masculino, já que seria o [feijão] soja. E como os velhos gramáticos esfalfavam-se para defender o soja! No entanto, o perfil fonológico terminou se impondo e soja passou a feminino, como convém a todos os nossos vocábulos que apresentam a vogal tônica aberta /ó/ e terminam em /a/; pouco a pouco os dicionários passaram a admitir os dois gêneros, e hoje, finalmente, registram apenas “s.f.” (“substantivo feminino”). É claro que muito contribuiu para isso o fato óbvio de que ninguém costuma incluir a soja na família dos feijões (a não ser que seja agrônomo).
O mesmo está acontecendo aqui: embora sejam, em termos enológicos, uma coisa só, sempre vi, no Brasil, distinguirem o vinho da champanha. Assim se expressa a maioria das pessoas, mesmo as mais cultas. Se eu tiver sorte, num jantar dos bons, o anfitrião vai perguntar se eu quero vinho ou champanha, ou se devemos passar do vinho para a champanha, já que, para nós, em nossa compreensão tropical, trata-se de duas coisas bem diferentes. A França tem todo o direito de torcer o nariz, mas, e nós com isso? Fica com o feminino, leitor; embora haja ainda alguma resistência, a direção de tendência já está traçada e é irreversível. Até numa forma afetuosa como “uma champanhota” já se percebe que a derivação está sendo feita espontaneamente sobre uma base lexical feminina. Além disso, como era de esperar, no verbete “champanhe”, o dicionário do Houaiss já indica, brilhando como uma pérola sobre veludo negro, que este substantivo pode ser usado nos dois gêneros. A próxima edição, daqui a anos, talvez só traga o feminino. Não te espantes: isso é a língua evoluindo.
[Não deixe de ler também o gênero e a champanha]
Depois do Acordo:
lingüísticos>linguísticos
apóiam>apoiam