champanha em Paris

Apesar do sucesso dos espumantes nacionais, o Doutor explica por que não há problema algum em utilizarmos o termo “champanha” para designá-los.

 

Dezembro chegou, e com com ele chegaram as festividades de fim de ano, com suas alegrias e chatices costumeiras. De uma dessas típicas festas de encerramento, promovida por um grande empresa de publicidade local, brotou a mais pitoresca pergunta que recebi até agora (e isso que o mês mal está começando…): “Professor, minha firma ofereceu ontem um coquetel luxuosíssimo; tinha camarão à vontade e serviram Veuve Clicquot do início ao fim. Eu não estou dizendo isso para contar vantagem, mas para que o senhor entenda a discussão em que me meti, ao comentar, simplesmente, que não havia champanha nacional que chegasse aos pés daquela que estávamos tomando. Primeiro o diretorzinho de mídia, que não gosta de mim, veio dizer, com uma pedra na mão, que o certo não era aquela, mas aquele champanha, no masculino — mas essa nem chegou a se criar, porque bastou alguém lembrar que o senhor defende para champanha a livre escolha entre masculino e feminino, e o baixinho se aquietou na hora. Mas depois o próprio chefe, que estava na rodinha, levantou uma tese que me pareceu interessante: não podemos falar em champanha nacional porque isso não existe, já que champagne é uma marca registrada, de propriedade da França, e só pode ser usada quando estivermos falando da legítima; para falar do produto nacional, só podemos empregar espumante. O senhor concorda?”.

Não, meu caro amigo, é claro que não concordo; a língua é soberana e não dá a mínima para meros acordos e regulamentos de propriedade industrial. Como a indústria vinícola brasileira não pode, por razões legais, chamar seus produtos de champanha, champanhe ou champagne, adotou a denominação genérica de [vinho] espumante. É assim que consta nos rótulos e no material promocional. Nossos falantes, no entanto, muitos antes de ocorrerem esses embates jurídicos, sentiram a necessidade de um vocábulo que lhes permitisse falar dessa bebida, e para isso incorporaram ao léxico do idioma o vocábulo champanha, como querem uns, ou champanhe, como querem outros (quanto ao gênero, veja minha explicação aqui). Friso que não se trata da bebida, mas da palavra; mesmo que a Roederer Cristal, que bebo nos dias gordos, venha da França, não posso viver sem um termo nosso para utilizar em frases do tipo “a verdadeira champanha vem da região de Champagne, a Campanha lá deles”, ou “ele só toma champanha paraguaia“, ou “nos demais países da comunidade européia, a champanha assume nomes locais, já que champagne é uma appellation contrôlée“, ou “a champanha nacional é vendida sob o nome de espumante“. No rótulo do uísque que aprecio está escrito whisky; no conhaque que eu gostaria de ter a meu lado, diante da lareira, deverá estar escrito, obrigatoriamente, cognac, ou nem chego perto. Nosso produtor não pode escrever champanha na garrafa; nós, simples civis, usaremos a palavra que que nos der na veneta.

Esta confusão entre a língua e a realidade é a mesma que levou um daqueles gramáticos rabugentos do centro do país a afirmar que papa não tem feminino porque jamais uma mulher assumiu o trono de São Pedro (apesar das lendas em contrário). Ora, isso não importa, porque a linguagem é muito maior que a realidade, permitindo que falemos no que existe ou no que nunca existiu. Quando mais não seja, precisamos do feminino papisa para poder dizer “Nunca houve uma papisa até hoje”, ou “A história da papisa Joana é uma lenda sem fundamento”, ou “Já tivemos vários papas, mas nenhuma papisa“.

Como um assunto puxa outro, o problema do gênero de champanha acabou levantando dúvida semelhante com relação a Paris: A Paris de hoje ou O Paris de hoje? Paris antiga ou Paris antigo? Parece óbvia a resposta? Pois não é. Entre outros, optam pelo masculino Vieira (“no mesmo Paris”), Eça de Queirós (“com conhecimento de todo o Paris”, “Oh, este Paris, Jacinto, este teu Paris!”, “aquele Paris ainda agitado“, “neste velho Paris”), Alencar (“Fizeram do Rio de Janeiro um pequeno Paris de bulevar”). Optam pelo feminino Nabuco (“essa impressão de arte que corre por cima da velha Paris toda como um friso grego”) e Coelho Neto (“Escolheu uma rua da velha Paris, apertada e sombria”). Esta hesitação, que não é usual entre nós (costumamos atribuir às cidades o gênero feminino), tem origem no próprio Francês. De um lado, De Gaulle, no seu famoso discurso de agosto de 1944, fala de “Paris ultrajado, Paris destroçado, Paris martirizado, mas Paris libertado pelas próprias mãos”. Do outro, a famosa Mistinguett já cantava, em 1926, “Paris, reine du monde/ Paris c’est une blonde” — o que, sem o ritmo e a rima originais, vem dar em vernáculo algo como “Paris, rainha do mundo/Paris é uma loira“. Aqui, em Portugal ou na França, cabe ao falante escolher.