Prezado Doutor: lendo seu excelente artigo sobre arigatô vem de obrigado?, fiquei em dúvida, no último parágrafo, quanto ao trecho “que falavam seu idioma mil anos antes DOS portugueses aparecerem por lá”. Nos anos 60, aprendi, com o saudoso professor Godofredo de Macedo, que era abominável a contração da preposição DE com o artigo antes de um verbo no infinitivo, devendo-se usar, portanto, “antes DE OS portugueses aparecerem…” Gostaria que me esclarecesse se esta regra mudou, ou se se tornou “mais elástica”, como tudo nos dias em que vivemos. Obrigado.
Luiz B. – Médico — Novo Hamburgo (RS)
Meu caro Luiz: o legendário professor Godofredo não inventou aquela regra; ele seguia a lição de um gramático do séc. XIX (Grivet), depois difundida pelo respeitado Eduardo Carlos Pereira e, a partir daí, repetida por muitos autores de livros escolares. Infelizmente eles se enganavam; confundiam a velha análise lógica, em que foram educados, com a análise sintática e fonológica. Como o problema já está suficientemente estudado, limito-me a recorrer ao trabalho de duas autoridades muito significativas para mim, Celso Pedro Luft, meu mestre e amigo, e Evanildo Bechara, o atual gramático-chefe do Brasil. Os argumentos e os exemplos são deles; o que não ficar bem claro deve ser debitado à minha falta de jeito.
Podemos dizer que aquela velha regra nasceu de um silogismo que parece inatacável:
(1) As preposições sempre subordinam o termo que vem à sua direita (termo regido).
(2) O sujeito, assim como o predicado, é um dos termos “nobres” da oração e não pode, por isso mesmo, estar subordinado.
(3) Logo, o sujeito jamais poderá vir regido por preposição.
Seguindo esse raciocínio, uma frase como “hoje é dia DELE voltar para casa” seria inaceitável, porque o sujeito “ele” estaria regido pela preposição “de”; a forma adequada seria “hoje é dia DE ELE voltar para casa”. Tudo parece muito lógico — aliás, era imprescindível que assim fosse, ou a hipótese não teria seduzido tantas boas cabeças brasileiras e portuguesas, como é o caso de Rebelo Gonçalves e de Eduardo Carlos Pereira. Ocorre, no entanto, que eles são gramáticos anteriores até mesmo a Ferdinand de Saussure, considerado o fundador da Lingüística Moderna, com o seu Curso publicado em 1916 (e que só veio a ser lido no Brasil muitos anos depois). Se fossem médicos, seriam, mutatis mutandis, como Hipócrates ou Galeno, exercendo a Medicina antes mesmo de surgir Pasteur.
Em “hoje é dia DELE voltar para casa”, o “de” não está regendo o pronome “ele”, mas sim toda a oração infinitiva, da qual o pronome é o sujeito: Hoje é dia DE + [ele voltar para casa]
Tanto Luft quanto Bechara perceberam que o equívoco dos velhos mestres nasceu da confusão entre sintaxe e fonética. A transformação da frase “a hora DE ELE voltar” em “a hora DELE voltar” é de ordem fonética (é a tradicional elisão), mas não afeta a ordem sintática (não houve a subordinação de “ele” a “dia”). Na fala, como já notou Sousa da Silveira, essa elisão é OBRIGATÓRIA; na escrita, admitindo-se que possamos escolher entre fazê-la ou não, assim mesmo foi praticada pelos melhores escritores de nosso idioma (não cito os posteriores à Semana de Arte Moderna de 1922 para que não digam que estou sendo tendencioso):
—”São horas da baronesa dar o seu passeio pela chácara” (Machado)
— “Antes dele avistar o palácio de Porto Alvo” (Camilo)
— “Sabia-o antes do caso suceder” (A. Herculano)
— “Antes do sol nascer, já era nascido” (Vieira)
— “Depois do enfermo lhe haver contado” (Bernardes)
— “Apesar das couves serem uma só das muitas espécies” (Rui)
Por outro lado, há também exemplos de autores clássicos (Vieira é um deles, e de peso!) que quase nunca fazem a combinação da preposição com o artigo ou o pronome; como são anteriores a Grivet (1881), não podemos atribuir a responsabilidade dessas escolhas à influência de sua famosa gramática. Citando Rodrigues Lapa, Bechara sugere que interfiram aqui fatores de ordem muito mais estilística do que gramatical, como, em certos casos, o desejo de deixar a preposição em destaque, evitando que ela fique “enfraquecida” pela elisão. Isso ainda vai ser estudado — se é que já não foi. De qualquer forma, recomendo ao amigo o exame dosubstancioso artigo “Está na hora da onça (ou de a onça) beber água?”, do prof. Bechara, que faz parte da coletânea Na Ponta da Língua-2 (Rio de Janeiro, Ed. Lucerna, 2000. p. 176-188). Abraço. Prof. Moreno
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