a logomarca e o ornitorrinco


Ninguém pode ser tão cego a ponto de negar a existência de um vocábulo como LOGOMARCA, que alcança 2.500.000 de ocorrências no Google e está presente em todos os dicionários importantes do idioma. E seria adequado empregá-lo? O Doutor discute o problema.

1 — Um levantamento feito nos dois últimos anos mostra que um número expressivo das colunas que escrevi foi dedicado a combater o preconceito contra determinados vocábulos que, por diferentes motivos — todos eles contestáveis —, sofrem verdadeiras campanhas de difamação na internet. Aqui um vocábulo é condenado porque é “feio”; ali, porque é “estrangeiro”; acolá, porque é “malformado”; ainda não ouvi, mas não vou me surpreender se a turba começar a jogar à fogueira da intolerância palavras por serem “gordas”, “vesgas”, “socialistas” ou “neoliberais”. A mais frequente — e mais curiosa — acusação utilizada nesse tribunal é a de “novidade”. O brasileiro médio tem demonstrado uma notória desconfiança por tudo que ele suspeite ser uma novidade lexical — e faço questão de frisar o “suspeite”, porque, muitas vezes, palavras mais velhas que a Sé de Braga passam por “novas” só por causa da incultura de seus acusadores.

Para início de conversa, o amigo leitor deve lembrar que ninguém conhece a totalidade do léxico de seu idioma, tornando-se impossível, portanto, distinguir-se o que é novo e o que não é. Entre os milhares de palavras que empregamos num simples dia, haverá talvez algumas novas, novíssimas até, mas que, por não chamarem a atenção do falante, terminam se misturando às outras como se já fossem de casa. Os dicionários até que ajudam, mas numa única direção: como sempre apresentam, por razões editoriais, uma lista incompleta e limitada de nosso vocabulário, servem ao menos para nos dizer o que não é mais novidade; quando registram uma palavra, é sinal de que ela passou a integrar definitivamente a lista das veteranas. Embora o inverso não seja verdadeiro — pois nunca poderemos determinar se a ausência de uma palavra no dicionário não se deve, muito simplesmente, a uma decisão tomada pelo sr. Houaiss ou pelo sr. Aurélio, que resolveram não incluí-la na lista por mera falta de espaço —, podemos ter certeza de uma coisa: palavra registrada não é palavra nova.

Por tudo isso, fiquei surpreso quando um leitor de Londrina escreveu para saber se a palavra logomarca existe ou não. Confesso que desconhecia essa má-vontade contra logomarca, palavra veterana no meu vocabulário, madura freqüentadora dos dicionários. Segundo ele, porém, a palavra tem inimigos figadais e “suscita querelas sem fim” (leitor qualificado é isso aí!) nos fóruns de discussão da área de design e publicidade; alguns, mais extremados, chegam a negar sua existência, acusando-a de ser um neologismo, “uma invenção de publicitários brasileiros” (acusação, eu diria, bastante singular nos tempos atuais…). Sua pergunta final — “Em suma, professor, o que faz com que uma palavra passe a existir? Uma palavra que é usada e entendida pela grande maioria e consta nos dicionários pode, ainda assim, ser considerada inapropriada?” — encerra duas questões diferentes: uma coisa é existir, a outra é ser apropriada. Vamos ver como logomarca se sai em ambos os quesitos.

O primeiro problema é saber se a danada existe. Dei uma passeada pelas páginas da internet indicadas pelo leitor e fiquei abismado de ver tantos designers e professores discutindo — vou ser franco, como sempre fui — um assunto em que não têm a menor competência. No que se refere a “neologismos”, “criação lexical”, “existe ou não existe tal vocábulo”, etc. — no que se refere a esses assuntos, repito, a comunidade dos designers, publicitários e similares pode ter, no máximo, opiniões. Nada mais do que isso. Este seu criado pode achar Walter Gropius um gênio e Niemeyer um arquiteto cujo fama está muito acima do valor que tem, pode achar os sapatos dinamarqueses mais bonitos e confortáveis do que os italianos, pode preferir os caças americanos aos caças franceses — pode, aliás, ter opinião sobre tudo, ou quase tudo, mas não passarão de opiniões do cidadão que digita estas palavaras. É preciso muito desconhecimento de como funciona uma língua para afirmar que uma palavra como logomarca — agora, janeiro de 2011, batendo mais de dois milhões e meio de ocorrências no Google — não existe ou não deveria existir! Nossos melhores dicionários — Aurélio, Houaiss e Aulete — já registram o termo há vários anos, e alguns teimosos amadores vêm dizer que o termo não existe? Isso parece a mesma atitude paroquialista dos habitantes de certos municípios que teimam em escrever à sua maneira o nome da cidade em que moram, como se o fato de viver lá lhes desse uma autoridade em ortografia maior do que a dos filólogos e gramáticos…

Alguns alegam que o termo teria sido criado por nossos publicitários. E daí? Qual é o problema? As palavras são criadas por pescadores, advogados, leiteiros, apontadores de jogo do bicho, jornalistas, prostitutas, etc. — todos criam, e só os publicitários e designers iam ficar de fora?


2 — Dois leitores especializados (C. Maciel, de Londrina, e M. Verdi, de Porto Alegre), inconformados com a perseguição movida ao vocábulo logomarca, vieram bater à minha porta em busca de munição para enfrentar as vozes — algumas delas, pasme o leitor, ainda poderosas — que se opõem ao emprego desta palavra. Para organizar a discussão, dividi o problema em dois quesitos: (1) existe o substantivo logomarca? e (2) é adequado empregá-lo? Como vimos na coluna anterior, negar sua existência é algo assim como negar a existência dos Andes (é o mínimo que posso dizer de uma palavra que tem verbete próprio em todos os bons dicionários do idioma e que, no Google, ultrapassa a marca de dois milhões de ocorrência nas páginas escritas em Português). Ora, já que existe, vamos hoje falar sobre a adequação — ou não — de empregá-la.

O maior foco de resistência a seu uso é uma obra isolada, mas importante em seu ramo — O Efeito Multiplicador do Design —, em que a autora, Ana Luiza Escorel, designer de reconhecido valor, condena logomarca com um misto de fúria e desprezo, num tom tão taxativo que fez vibrar a corda fundamentalista que muitos profissionais desta área trazem escondida no peito. Ora, não deu outra: o efeito multiplicador da internet (esse sim, esse é x.p.t.o.) difundiu por toda parte os argumentos da professora, que passaram a ser reaproveitados, ou melhor, reproduzidos, letra por letra, em vários saites e fóruns que se dedicam ao assunto. Infelizmente, como vamos ver, a autora (e seus seguidores), ao se apoiarem mais na indignação e na veemência do que propriamente na pesquisa, vêem toda sua argumentação escoar como areia entre os dedos.

Ela acusa: “Logomarca é uma dessas criações tipicamente brasileiras” (eis um jeito realmente esquisito de criticar!). Pois não é, professora; se fosse criação tupiniquim, como a jabuticaba ou o cheque pré-datado, teríamos de convir que nossos inventores de palavras acertaram em cheio desta vez, pois o vocábulo vai se tornando sucesso internacional e já figura em milhares de saites da Austrália, do Japão, do Reino Unido e mesmo dos EUA, onde aparece como logomark, logo mark ou logomarque… Isso faria logomarca ingressar naquele grupo de vocábulos especialíssimos como negro, tanque, albino, casta, cobra ou marmelada, modesta contribuição de nosso idioma para o léxico do Inglês, mas, infelizmente para mim e para a senhora (por motivos diferentes, é claro), o caminho foi o inverso: fomos nós que o importamos de lá.

E continua: “Logomarca quer dizer absolutamente nada”. (Parêntese indispensável: em algum lugar, decerto por culpa de um vil revisor, perdeu-se a negativa que sempre deve anteceder a presença de “nada”: eu não comprei nada, ninguém viu nada, logomarca não quer dizer nada. A construção *”logomarca quer dizer nada” é, em vernáculo, tão absurda quanto *”eu comprei nada” ou *”encontrei nada na gaveta”). Pois, a depender do autor, quer dizer, sim, professora. Uns chamam de logotipo o conjunto formado pela representação gráfica do nome + o símbolo visual que o acompanha; outros, porém — e Houaiss é um deles — chamam de logotipo apenas as letras do nome, em sua configuração especial, e reservam logomarca para designar o conjunto formado pelo logotipo + o sinal gráfico. No Inglês, também campeia aqui uma verdadeira dança das cadeiras, atribuindo-se, dependendo do autor e da teoria, valores diferentes a logo, logotype, logomark, wordmark, etc. Essas tempestades terminológicas são corriqueiras em qualquer área do conhecimento humano; não é por acaso que todas as teses e artigos especializados gastem boa parte da introdução para definir os limites de cada termo empregado pelo autor. Um grande escritório de propriedade industrial da Califórnia cobra bem menos para registrar uma wordmark do que uma logomark, “cuja pesquisa é mais demorada” — o que sugere que tanto os que cobram quanto os que pagam enxergam nelas coisas diferentes…

Mas voltemos ao artigo: “É espantosa a desenvoltura com que cerca de dois terços da população ligada à comunicação gráfica no Brasil usa e veicula essa coisa nenhuma [a logomarca…], com a segurança de estar brandindo um termo de alto teor técnico e expressivo”. Dois terços, professora? E senhora acha espantoso? Ora, em termos lingüísticos, a realidade está claríssima: se não se usava logomarca, agora se usa. É assim que funciona. Logotipo perdeu a parada. E não se trata daquele demagógico (e equivocado) bordão de que “é o povo que faz a língua”: foi a “a população ligada à comunicação gráfica no Brasil” (uso suas próprias palavras) que realizou o plebiscito que deu legitimidade ao termo. Mas o alcance dele ainda não está bem definido? Ora, o de logotipo tampouco, como pudemos ver.  (continua)