irmãmente

Uma leitora não encontra o advérbio IRMÃMENTE no dicionário e quer saber se mesmo assim pode utilizá-lo. O Doutor explica que sim e tece algumas considerações sobre o uso do til.

 

A leitora Ana Beatriz escreve de São Paulo com uma dúvida surpreendente: ela quer saber se a frase “vamos dividir a despesa como irmãos” pode ser reescrita como “vamos dividir a despesa irmãmente“. E acrescenta: “Eu achava que era possível, mas pesquisei nos dicionários que utilizo normalmente e não encontrei esta palavra. Gostaria de saber se ela existe e, em caso positivo, se está correto grafá-la com til”. Digo que é uma dúvida surpreendente porque cresci usando este vocábulo e nunca tinha me passado pela cabeça, até agora, verificá-lo no amansa-burro. Pois fui bater o olho no Houaiss e no Aurélio (nessa ordem, e na proporção de cinco para um, os autores que mais consulto) e não achei nem sombra dele (para fazer justiça, devo registrar que ele está muito bem explicado no Caldas Aulete digital, sem dúvida o melhor dicionário gratuito da internet brasileira).

O curioso é que o vocábulo já aparece em textos portugueses do séc. 16, no tempo em que os brasileiros ainda andavam nus e assavam o vizinho para o almoço. Tudo indica que continuou a ser usado sem interrupção, pois vem registrado no avô e no bisavô de nossos dicionários: “irmãmente — com amor de irmãos”, define Bluteau (1712); “a modo de irmãos, em boa paz e harmonia”, define Morais (1813). Além disso, os bons escritores decididamente o aprovaram, porque não faltam exemplos de seu emprego. No Brasil, basta ouvir Machado de Assis: “dividimos muita vez esse pão da alegria e da miséria, irmãmente, como bons irmãos que éramos”; “homem e macaco sentam-se em face um do outro na sala de jantar e comem irmãmente as duas refeições”; “posto que Bernardo Guimarães fosse mais velho que nós, partíamos irmãmente o pão da intimidade”. Em Portugal, escolho Camilo: “Depois, esgotado irmãmente o cálice, morrerem ambos”; “dois comendadores gordos, que devoravam  irmãmente um pastelão de ostras”. Só com esses dois curingas eu poderia dar o jogo por encerrado, mas, se quiserem, há ainda Eça de Queirós, Euclides da Cunha e até o modernosíssimo Guimarães Rosa (“o Fafafa, que estimava irmãmente os cavalos, deles tudo entendia, mestre em doma e em criação”).

A esta altura, acredito que nem o mais empedernido descrente terá a coragem de negar que o vocábulo existe e que é moeda boa, de livre circulação. A leitora, porém, tem todo o direito de ficar intrigada com a sua ausência nos dicionários usuais.  Sabemos que, por economia, os dicionaristas normalmente não incluem os advérbios em -mente porque seu processo de criação (basta acrescentar –mente a qualquer adjetivo) é totalmente automático e conhecido pelos falantes: quando Antônio Houaiss registrou suave, sabia que não precisava registrar suavemente. Existem, no entanto, certos casos — e irmãmente me parece ser um deles — que devem ser incluídos no dicionário porque adquiriram alguma nuança nova de significado, desvinculada de sua origem. O usuário precisa ser avisado de que diametralmente, além de indicar o sentido do diâmetro (transversal), significa também “diretamente, inteiramente”, como podemos ver na expressão “diametralmente oposto”. É indispensável, também, que se registre que redondamente significa “completamente” (“Estávamos redondamente enganados”) e nada tem a ver com a forma geométrica. Pelo mesmo motivo, acho que deveria constar que irmãmente, além de significar “fraternalmente, harmonicamente”, adquire um sentido de exatidão e simetria quando é usado com o verbo dividir; dividir irmãmente uma despesa significa dividi-la em partes rigorosamente iguais.

A dúvida sobre a grafia é compreensível, já que nenhum advérbio em –mente conserva o acento do vocábulo de origem (rápida, rapidamente; , somente; espontânea, espontaneamente). O motivo é simples: quase todos os sufixos de nosso idioma são tônicos e, portanto, assumem a sílaba tônica de qualquer vocábulo novo que vierem a formar. Dessa forma, todos os advérbios formados com –mente são paroxítonos (a sílaba tônica é “men”) e, ipso facto, não se enquadram em regra alguma de acentuação — nem antes, nem depois do famigerado Acordo. Isso, contudo, não interfere na presença do til, que é apenas um sinal indicador da nasalidade da vogal e não pode ser confundido com os acentos gráficos, o que fica bem claro em exemplos como órfã, em que o til convive com o acento, ou alemãozão, em que o vocábulo recebe dois tis. Irmãmente vai ostentar obrigatoriamente aquele til, assim como fazem cristãmente, vãmente, temporãmente e louçãmente — ou, com outros sufixos, em manhãzinha, irmãzinha, lãzudo, pãozinho, pãozão, avelãzeira.

Depois do Acordo: nenhuma palavra deste texto sofre alteração na sua grafia.