O ABC da Língua Culta, de Celso Pedro Luft, passa a ser o novo vade-mécum do Doutor, que o considera, sem exagero algum, um verdadeiro presente dos deuses da gramática.
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3 – Há palavras, caro leitor, que ficaram para sempre associadas, na minha memória, ao livro em que as vi pela primeira vez. Conheci vade-mécum ao ler, no tempo do ginásio, o adocicado romance Inocência, do Visconde de Taunay. Cirino, o “doutorzinho” da roça, extraía toda a sua ciência das páginas do Chernoviz, o famoso manual de medicina popular que se tornou presença obrigatória em todas as casas de fazenda deste país. “Era o seu inseparável vade-mécum… Noite e dia o manuseava; noite e dia o consultava à sombra das árvores ou junto ao leito dos enfermos”. Vade-mécum! Mas que bela palavra! Se nos limitássemos a traduzir seus dois componentes latinos, produziríamos um prosaico “vai comigo”; felizmente os deuses da língua nos deram o bom senso de mantê-la intacta, fazendo apenas as alterações ortográficas necessárias para conservar a sonoridade original, clássica e elegante (vadameco também é forma aceitável, mas me soa absolutamente chinfrim).
Os vade-mécuns (como diria um gramático zombeteiro, “Mas que plural tão singular!”) são manuais completos e organizados que reúnem todas as regras e dados indispensáveis para o exercício de um determinado ofício ou atividade. Úteis, práticos e geralmente portáteis, constituem uma preciosa fonte instantânea de referência, um companheiro inseparável de quem sabe usá-los — “um livro que anda sempre comigo”, como diz seu nome. Há vade-mécuns destinados ao advogado, ao agrônomo, ao enfermeiro, ao panificador, ao horticultor, ao criador de canários, ao tradutor e a tudo mais que o leitor puder imaginar. Para a língua portuguesa, há o ABC da Língua Culta.
Segundo a bem humorada classificação proposta por um linguista inglês, os seres humanos se dividem, no que se refere ao domínio do idioma, em duas categorias: os despreocupados e os aflitos. Para os primeiros, a linguagem é invisível, assim como é invisível para o peixe a água em que ele vive. Os outros, contudo — em cujas fileiras estamos nós, caro leitor —, estão sempre atentos para as palavras que empregam, para os torneios de frase, para as seqüências sonoras, para os mínimos detalhes da linguagem que utilizam. Uma palavra desconhecida, uma flexão que fere o ouvido, uma dúvida quanto ao uso, por menor que seja, leva-os a consultar — e não sem um certo prazer — o dicionário, a gramática, o guia ortográfico. Dá mais trabalho, mas não preciso dizer, é claro, que os aflitos conseguem comunicar o que sentem e o que pensam de uma forma muito mais precisa e articulada do que os despreocupados…
Quem faz parte desta tribo sabe, porém, que as informações necessárias geralmente andam esparsas por várias obras de referência — dicionários de língua, de regência ou de etimologia, gramáticas, guias ortográficos, manuais de conjugação verbal, etc. Quais são os autores confiáveis para esclarecer minhas dúvidas? A quem posso perguntar se frase com dupla negação tem sentido afirmativo? Ainda persiste a antiga distinção entre estada e estadia? A expressão melhor boa-fé está correta? Existe diferença entre debaixo e de baixo? E qual é a certa: “duas vezes dois” ou “dois vezes dois”? “Falamos desde nossos estúdios” — isso pode? E quando se usa mais bem? Etc.
Além disso, há centenas de situações em que a própria língua culta hesita entre formas variantes. Como definir qual a melhor escolha? Pronuncio algoz com o O aberto ou fechado? Escrevo deficit sem acento, como vocábulo latino, ou uso as formas modernizadas déficit ou défice? Escrevo (e pronuncio) clítoris ou clitóris? O melhor nome da letra W é dábliu, dáblio, doblevê ou vê-duplo? Eu me dou o luxo ou ao luxo? Viquinge, víquingue ou viking? Os gregos brigavam entre si ou entre eles? Cabine ou cabina? Desprezável ou desprezível? E por aí vai a valsa.
Pois imagine, amigo, que agora podemos fazer todas essas perguntas, e muitas outras, ao próprio professor Luft, que ele não deixará nenhuma sem resposta. É aqui que entra o seu ABC. Lá estão, em ordem alfabética, milhares de questões como essas, com as escolhas que ele recomenda e as soluções que ele propõe. Podemos discordar em alguns pontos, mas sempre vamos encontrar ali a voz serena de uma grande autoridade. Sem diminuir o valor dos dicionários e gramáticas que ele escreveu, arrisco-me a dizer que esta passará a ser sua obra mais importante, pois coloca à disposição de todos — seja leigo, seja especialista — a soma de toda a sua vastíssima cultura linguística, um verdadeiro tesouro de informações claras e organizadas.
Tenho alguns amigos que fogem ao trabalho de pesquisa e ligam para mim sempre que têm alguma dúvida, assim economizando seu tempo à custa do meu esforço. Pois agora eles andam intrigados com a rapidez e a boa vontade com que os atendo e elogiam a precisão de minhas respostas; não sabem que mantenho, ao lado do telefone, o meu exemplar do ABC da Língua Culta, o vade-mécum supremo dos aflitos!
LUFT, Celso Pedro. ABC da Língua Culta. São Paulo, Editora Globo, 2010. 555 p. [ISBN: 9788525047939]
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