Veja por que os esquisitíssimos *paralimpíada e *paralímpico jamais poderão conviver pacificamente com os demais vocábulos que compõem o nosso léxico.
Como deixei bem claro na coluna anterior, é impossível conviver com uma formação tão esdrúxula quanto a famigerada “paralimpíada”, que não só contraria o que já foi consagrado pelo uso e pelos dicionários (Houaiss, Aulete e o próprio VOLP só registram paraolimpíada), como também viola princípios básicos do funcionamento da língua portuguesa. A criação lexical não vai parar nunca, enquanto o Português for uma língua viva, mas os vocábulos — tanto os que já existem como os que haverão de ser criados — nascem seguindo determinados parâmetros imutáveis, gravados, digamos assim, no DNA do idioma.
É possível que surja, de vez em quando, um vocábulo tecnicamente “malformado”, mas ele só vai conviver em nosso meio se os falantes, de alguma maneira, nele enxergarem uma fisionomia conhecida. Um excelente exemplo é vestibulando: de alimentar, graduar, adotar e analisar produzimos substantivos com a noção implícita de “aquele que deve fazer ou ser”: o alimentando, o graduando, o adotando, o analisando. Não seria descabido, portanto, afirmar que este sufixo serve para formar substantivos a partir de verbos da 1ª conjugação. Ora, os falantes aplicaram esta regra ao adjetivo vestibular (para entrar na universidade, prestamos um concurso vestibular — isto é, de ingresso) e geraram vestibulando, que decididamente não é “aquele que vai ou deve se vestibular”. E daí? Por ser fruto de um acidente genético, não tem direito a viver? Quem vai decidir é o plebiscito silencioso do uso: cada vez que alguém o emprega, está votando por sua existência, e hoje, no Google, ele está batendo dois milhões e meio de ocorrências. Como meu mestre Luft dizia, em off (vocábulo tupi-guarani que até hoje conserva grande utilidade): “Palavra nova é como macarrão; atirou na parede e colou? Então essa não morre mais”.
Infelizmente, “paralimpíada” não tem, como tem vestibulando, aquele rosto conhecido que a faria passar despercebida no meio das outras. Sua nota destoante — o que realmente nos incomoda — é o desfiguramento do radical olímpico com a eliminação do “o” inicial, algo impensável no nosso sistema de formação de palavras. No Português, o radical não costuma perder fonemas, principalmente aqueles que o iniciam. Explico melhor: os radicais são os donos da casa, os prefixos são eventuais visitantes. Se, ao unirmos os dois, for necessário suprimir algum fonema vocálico, quem vai sofrer a amputação será — invariavelmente! — o prefixo. Por exemplo, ao formarmos vocábulos como para+estatal, para+esportista e para+esgrimista (estou usando o símbolo “+” apenas para assinalar o limite entre os dois componentes), o prefixo não perde fonema algum de sua configuração original. Nem sempre, porém, ele vai ter esta sorte: em par+encéfalo, par+estesia, par+odontia, sua vogal final foi suprimida para permitir uma ligação harmoniosa com o radical. Repito: se alguém tem de ceder, não vai ser o radical, que precisa estar intacto para ser reconhecido.
Em certos casos, até, podem coexistir variantes que se distinguem apenas pelo maior ou menor grau de concatenação dos dois elementos (o que vem a ser, como o leitor já deve ter percebido, a velha diferença que se estabelecia entre a aglutinação e a justaposição): os dicionários nos permitem escolher entre termo+elétrica ou term+elétrica, hidro+avião ou hidr+avião — mas não podemos sequer imaginar formações em que a vogal final do prefixo seja preservada à custa do sacrifício da vogal inicial do radical. Vocábulos como *termo+létrica e *hidro-vião seriam tão absurdos quanto seriam, no parágrafo anterior, *para+ncéfalo, *para+stesia e *para+dontia. Que se aceitem, ao lado de para+olimpíada e para+olímpico, variantes como par+olímpico e par+olimpíada é perfeitamente defensável — mas jamais abantesmas do calibre de *para+límpico ou de *para+limpíada, como querem nos impingir, que parecem muito mais associadas a limpo e limpar do que a olímpico e olimpíada. Os ingleses não se importam com paralympics e paralympism porque, para eles, os efeitos colaterais são inexistentes; aqui, no entanto, dizer que tal medalhista é o “grande destaque do paralimpismo brasileiro” sugere atividades mais relacionada à limpeza que ao esforço esportivo e permite (não fosse o brasileiro malicioso!) algumas ilações bem escatológicas…
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Finalizando, aproveito para comunicar aos amigos que em outubro, na segunda quinzena, terá lugar uma nova edição do meu curso de quatro encontros sobre as mudanças que o Acordo Ortográfico introduziu na nossa maneira de escrever. Mais detalhes pelo fone 30187740 ou em www.casadeideias.com.