Quando escrevi sobre japonesismos — vocábulos japoneses que entraram no Português —, indiquei, para serenar o ânimo daqueles que se rebelam contra essas importações, alguns exemplos de vocábulos de nossa língua que passaram a fazer parte do léxico do Japonês. Jogo limpo: dá cá das tuas, toma lá das minhas. No entanto, como não estamos acostumados a exportar palavras, o artigo desencadeou uma série de mensagens de leitores, certamente entusiasmados com a reconfortante idéia de que agora era a nossa vez de invadir o léxico alheio.
Além dos que listei naquele artigo, foram lembrados também os seguintes: pan (“pão”), kappa (“capa”), rozario (“rosário”), tabako (“tabaco”) e shabon (“sabão”), entre os óbvios. Mas há outros que não são tão evidentes. Lembro as alterações que ocorrem na transposição desses vocábulos para o sistema fonológico do Japonês:
as sílabas são constituídas de vogal, ou de vogal+consoante; há a troca do /l/ por /r/; insere-se um /u/ entre as duas consoantes dos encontros — que fazem o onipresente McDonald’s transformar-se em algo como makudonarudo. Com essa explicação, dá para reconhecer arukuru (de álcool), biduru (de vidro), birudo (de veludo — essa é boa!) e karuta (de carta de baralho).
A cultura japonesa chama esses vocábulos estrangeiros de gairaigo, termo traduzível aproximadamente como “linguagem que veio de fora”. Primeiramente oriundos do Português e do Holandês, devido ao comércio marítimo do séc. XVI, passaram a provir de todas as línguas ocidentais, a partir da abertura dos portos do Japão no séc. XIX. Como em outros lugares deste pequeno planeta, movimentos ultranacionalistas de direita tentaram banir esses estrangeirismos, principalmente nos anos que antecederam a entrada do Japão na 2a Guerra. No entanto, como era de se esperar, a linguagem, com suas leis próprias e irrevogáveis, continuou a incorporar esses vocábulos ao léxico japonês, adaptando-os e modificando-os de modo a torná-los indistinguíveis dos demais (ao menos para falantes não-nativos). Com a sabedoria milenar do Oriente, nenhum deputado japonês até hoje propôs uma lei que torne proscritas as palavras gairaigo…
Agora, uma lenda precisa ser desfeita: não poucas vezes encontrei a explicação de que a forma clássica de agradecimento japonesa, arigatô, teria vindo do Port. obrigado. Explica um “entendido”: “com a mania (?) dos japoneses em deixar a última sílaba mais forte, obrigado virou obrigadô — com o tempo, arigatô“. Nossa! Isso é que é demonstrar profundo conhecimento e forte intuição lingüística! Agora, falando sério: arigatô, que podemos traduzir por nosso obrigado, vem de arigatai (“raro, difícil de encontrar”). Esse vocábulo já era usado no Japão muito antes de terem visto um português vivo e pode ser encontrado em textos antigos da literatura japonesa; aliás, era de se esperar que os japoneses, que falavam seu idioma mil anos antes dos portugueses aparecerem por lá, já soubessem expressar sua gratidão com palavras próprias. Essa explicação do “obrigadô” até parece coisa daquele sábio que demonstrava como a corneta veio do tambor: “Muito simples: o tam virou cor, e o bor virou neta“!
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