Os abnegados autores de dicionários sabem que estão eternamente condenados a viver indecisos entre casos de polissemia e de homonímia. A palavra manga é um bom exemplo: existe alguma relação entre a fruta e a parte da camisa? Se estivermos diante de um só vocábulo com dois sentidos, será polissemia; se forem dois vocábulos diferentes, de origens e significados diversos, que convergiram para a mesma configuração fonológica e ortográfica, será homonímia. Um exemplo corriqueiro de vocábulo polissêmico (do Grego poli, “muitos”, e sema, “significado”) é letra, que tem no mínimo três significados bem conhecidos: (1) um dos sinais gráficos do alfabeto; (2) o texto de uma canção; (3) um título de crédito. A maioria dos falantes percebe o retrós que costura tudo isso, já que os três sentidos estão relacionados ao ato de escrever. Quando, no entanto, não conseguimos estabelecer uma relação satisfatória entre os significados — como é o caso da manga —, há forte probabilidade de que estejamos diante de um par de vocábulos diferentes que se confundem por causa da homonímia. Uma rápida investigação no dicionário confirma nossa intuição: a fruta vem do Malaio manga, enquanto a parte da vestimenta em que enfiamos os braços vem do Latim manica.
Um bom dicionário deveria tentar distinguir os casos de homonímia dos casos de polissemia: manga mereceria dois verbetes diferentes, enquanto os vários significados de letra seriam relacionados no corpo do mesmo verbete. Houaiss, por exemplo, nunca afrouxa: para ele, os cravos da florista, o cravo que faz par com a canela, no doce, os cravos que pregaram Cristo na cruz e os cravos da pele são quatro significados de um mesmo vocábulo, enquanto o cravo da música de Bach e de Scarlatti é um vocábulo totalmente diferente. Infelizmente, nem todos são meticulosos (e corajosos) como ele, o que termina favorecendo a confusão entre termos de origens distintas e deixando solta a criatividade do leitor para imaginar laços etimológicos onde eles não existem, como vem acontecendo, por exemplo, com coito e coitado, tão alheios um ao outro quanto o apito e a pitonisa.
E bossa? É um exemplo de homonímia ou de polissemia? A palavra bossa, diz meu Aurélio, além de designar uma grande variedade de calombos e protuberâncias, significa também “aptidão, queda, pendor, vocação”. A bossa que o dromedário tem nas costas (o camelo tem duas, exceto a mascote dos cigarros Camel, que deve ter perdido uma delas no deserto…) e a bossa do incomparável Tom Jobim são entidades distintas, ou se trata apenas de dois significados para um mesmo termo? Ora, as palavras, assim como os seres humanos, são indissociáveis de sua história pessoal; uma ida ao passado nos revela que estamos diante de um vocábulo único, que acabou enriquecido com novos significados por força da Frenologia, uma “ciência” que foi muito popular no séc. XIX, mas que não sobreviveu ao aparecimento de Freud e sua teoria sobre a psique humana. Para seu criador, o austríaco Franz-Joseph Gall, cada uma de nossas faculdades mentais estava situada num ponto específico do cérebro, e o maior desenvolvimento de alguma delas ia refletir na forma externa do crânio. Dessa maneira, era possível (acreditava ele…) estudar a personalidade e as aptidões de um indivíduo apenas pela observação e medição das protuberâncias de sua cabeça, o que se prestava como uma luva para testes vocacionais: um frenologista, apalpando o cocuruto de uma criança, informava à ansiosa mãezinha que seu filho tinha a bossa da matemática (ou da política, ou das artes, etc.) muito desenvolvida. Meu leitor pode imaginar quantas vezes se ouviram frases do tipo “meu filho tem bossa de músico”, “ele vai ter grande facilidade nas matemáticas, porque o doutor disse que ele tem a bossa“. Ora brincando, ora levando a sério, Machado, Eça e Camilo falaram nessas “bossas” de nossa personalidade; Vargas Llosa, no seu A Guerra do Fim do Mundo, imagina um frenologista escocês, meio maluco, não por acaso batizado de Galileu Gall, que se perde no meio dos fanáticos de Antônio Conselheiro, durante a campanha de Canudos.
À medida que o Ocidente ia esquecendo, com justiça, a folclórica Frenologia, a palavra bossa passou a ser entendida pelos falantes como um sinônimo de jeito — “Não sei se ele joga bem, mas ao menos tem bossa de jogador”. Por isso, nos anos 60, quando Jobim e seus colegas inventaram um novo jeito de fazer o samba, estavam lançando uma nova bossa. Meu leitor há de convir: na fria letra do dicionário, jamais imaginaríamos esta ligação entre os dois sentidos do termo; sem recorrer à História, sem ressuscitar o nome de Gall, poderíamos apostar, erroneamente, que se tratava de duas palavras completamente independentes.