No início do século passado, antes da 1a. Grande Guerra, o estudo da Língua Portuguesa no Brasil era dominado por um bando de corvos barulhentos, de pouca ou nenhuma ciência, que passavam seu tempo a procurar “defeitos” na linguagem dos outros e a acusá-los, com o dedo em riste, como se fossem criminosos hediondos. “Galicismo!”, bradava um; “Errou a mesóclise!”, gritava outro; e a vítima, o autor desses “erros”, tinha de vir a público fazer sua defesa, apoiar-se nos clássicos, invocar autores consagrados que lhe avalizassem a frase suspeita. Nem Machado escapou desses abutres! Só Camões passou livre por essa gentalha: escreveu “Alma minha gentil que te partiste” bem na entrada de seu maravilhoso soneto, e não veio nenhum desses pigmeus apontar-lhe o dedo e gritar “Fora! Falou maminha“!
Foi um tempo de trevas, para os estudos do Português; esses inquisidores, todos eles autodidatas da pior espécie, chegaram a deter o poder cultural e literário, aliados aos maus poetas do Parnasianismo, aquele estilo fraco e artificial que grassava neste país e que até hoje tem suas viúvas. Infelizmente, essa época deixou marcas profundas no nosso ensino gramatical; é com indignação que vejo, até hoje (século XXI!), professores falarem a seus alunos sobre “vícios de linguagem”! Meu Deus! Que tipo de curso de Letras fizeram essas “sumidades”? E ainda enchem a boca, falando da “crise atual da linguagem”. Pudera não; com mestres assim, o que será dos discípulos?
Pois uma das preocupações desses censores eram os cacófatos — palavras torpes, obscenas ou ridículas (esta adjetivação é da época) formadas por aqueles encontros casuais das sílabas finais de um vocábulo com as iniciais do outro. “Não pense nunca nisso” – pronto! Falou caniço. “Já que tinha resolvido…” — pronto! Falou jaquetinha. “O irmão pôs a culpa nela” — pronto! Falou panela. “Existe uma herdeira” — pronto! Falou merdeira. Sou obrigado a reconhecer, nesses fanáticos, uma imaginação exacerbada e uma extrema sensibilidade para o mau vocábulo. Dir-se-ia que eles, como o Joãozinho da anedota (ou, para ser mais atual, como Beavis e Butthead), andavam a pensar apenas em sem-vergonhice, ou a procurá-la por toda parte. O leitor normal (principalmente na leitura usual, silenciosa) sequer enxerga essas preciosidades, e precisamos apontá-las com o dedo, sublinhá-las até, para que ele finalmente se dê conta de que elas podem estar ali.
Foi por causa do cacófato que chegaram a propor o uso do apóstrofo (na escrita!) em expressões como “u’a mão”, para evitar o som /umamão/, (na fala!) que poderia ser segmentado como “um mamão”. É de fazer chorar bacalhau em porta de venda! Lima Barreto, corrosivo e denodado inimigo desses gramatiqueiros puristas, fez questão de colocar, no título de um de seus romances (e já foi dito que o título é a frase do livro que mais vezes será lida e repetida), “Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá”. Das milhentas combinações de iniciais que poderia ter usado, podem ter certeza que não foi por acaso que escolheu essa insultuosa mijota.
Hoje só se admite uma certa preocupação com os cacófatos no caso da TV e do rádio, e, mesmo assim, dificilmente o ouvinte vai fazer essas segmentações tendenciosas. Só mesmo quando o efeito é gritante; meu amigo Sérgio Nogueira fala da transmissão do jogo Brasil e Coréia, em que ouviu “Fábio Conceição pediu a bola e Cafu deu” — bom, aí é um petardo que não podemos deixar de ouvir, como também no famoso “chuta Neneca, gol!”. Fora disso, tenho visto é aquele uso maroto do cacófato, que o autor faz questão de sinalizar para que todos percebam. Lembro de uma entrevista na TV com o humorista Jaguar, em que ele disse “o boom pausa da literatura”; ao falar “pausa”, estava fazendo uma bela piada. Ou de uma receita fornecida por Wilson Morais, na revista Culinária ICONet, em que ele escreve “Sal e alho (pique, não amasse naquele aparelho de socar alho — perdão pelo cacófato inevitável!)”. Ou ainda de um quadro do Moacyr Franco, no programa A Praça é Nossa (vejam como Sua Língua também é cultura!), em que ele interpretava um tal de Jeca Gay. Agora sim, parece que encontraram o verdadeiro tratamento que o cacófato merece, diferente daquela visão repressiva, obscurantista, do Brasil de antigamente: ele é um jogo criativo com a linguagem, safado, moleque, presente nas brincadeiras verbais do colégio e nas genuínas piadas do Casseta & Planeta. É com espírito saudoso que relembro um pequeno poema que costumávamos recitar, no meu tempo de ginásio, e com ele encerro este artigo:
No alto daquele cume
Plantei uma roseira
O vento no cume bate
A rosa no cume cheira
Quando vem a chuva fina
Salpicos no cume caem
Formigas no cume entram
Abelhas do cume saem
Quando vem a chuva grossa
A água do cume desce
O barro do cume escorre
O mato no cume cresceEntão quando cessa a chuva
No cume volta a alegria
Pois torna a brilhar de novo
O sol que no cume ardia
Depois do Acordo: Coréia > Coreia