Prezado prof. Moreno: por que ensino a distância não leva acento de crase? Discutimos aqui que poderia ser pelo fato de não estar determinada a distância, já que temos o acento em frases como “o carro estava à distância de 100 metros”. É isso? Fui ao Aurélio e vi que são aceitas as duas formas. Posso escolher? Marta G. — Porto Alegre
Qualquer brasileiro que passou pela escola deve saber que a crase é um fenômeno que ocorre quando dois As se encontram no interior de uma frase: a preposição A, que fica à esquerda, encontra o artigo A, que fica à sua direita. Ora, isso só poderia ocorrer, rigorosamente, numa ÚNICA SITUAÇÃO: antes de um substantivo feminino (expresso ou elíptico) que tenha o artigo A. Fora disso, em qualquer outra situação, é impossível que se encontrem os dois As necessários para esse casamento.
Como se explicaria, então, a grande incidência de erros do tipo *barco à vapor, *bufê à quilo, *escreveu à lápis, *começou à chorar, *entregou à ela, *trafegava à 60km, em que não se pode sequer suspeitar da existência de um artigo feminino? É apenas mais uma conseqüência da decadência do ensino brasileiro, diriam alguns. Eu concordo, mas em parte. A Lingüística moderna nos explica que todo erro que é cometido por uma extensa faixa de usuários deve ter alguma forte motivação subjacente; o mau ensino pode deixar o cidadão despreparado para empregar o acento de crase, mas não pode ser a causa de tantas pessoas quererem pôr o acento aí! Em outras palavras: se posso responsabilizar os maus instrutores de direção pelos maus motoristas que infernizam o trânsito, não poderia responsabilizá-los se um número expressivo de seus alunos resolvessem se atirar, de carro e tudo, pelo penhasco abaixo. De onde vem a vontade de colocar esses acentos indevidos? Acredito que isso seja apenas a materialização da tendência instintiva (já destacada pelo incomparável Celso Pedro Luft, patrono desta página) de trocar o sistema vigente por outro mais simples, que consistiria, à francesa, em acentuar sempre o A quando for preposição. Friso que não estou justificando essa prática camicase de usar o acento antes de substantivos masculinos; tento apenas entender o que leva tanta gente boa a fazê-lo.
Said Ali já tinha demonstrado que os escritores de nosso idioma, desde o século XVI, usavam acentuar também a simples preposição antes de palavra feminina, em expressões como “à faca“, “à espada“, “à fome“, embora expressões equivalentes no masculino deixassem bem claro que não havia aqui o encontro de dois As (“a machado“, “a martelo“). Na mesma linha algo foi ensaiado por José de Alencar, no século XIX, o que lhe valeu a crítica de um dos gramáticos “medalhões” da escola do Rio de Janeiro, que fez um estudo sobre a linguagem alencariana mostrando que, infelizmente, o autor de Iracema não sabia usar nem a crase… Ele não entendeu que ali o acento apenas servia para distinguir o artigo da preposição.
Hoje a maioria dos gramáticos aceita a hipótese de usarmos acento grave numa série de expressões com palavra feminina em que o A é simples preposição, isto é, sem que ocorra ali um encontro de dois As. Há casos em que isso tem a clara intenção de desambigüizar a expressão, evitando que a preposição possa vir a ser lida como artigo, o que alteraria o significado: vender à vista (compara com vender a prazo: só a preposição está presente); bater à máquina; fechar à chave; apanhar à mão; pescar à rede; estudar à noite. Em muitos outros, contudo, mesmo sem a possibilidade de leitura ambígua, já ficou tradicional esse acento sobre a preposição: à direita, à esquerda, à força, etc. Como Luft conclui: “A tendência da língua é acentuar o A inicial das locuções femininas (adverbiais, prepositivas e conjuntivas), mesmo quando não é crase [o grifo é meu]”.
Quanto à locução à distância, tanto o Grande Manual de Ortografia Globo (Luft), quanto o Houaiss e o Aurélio indicam, expressamente, a dupla possibilidade de grafia; então, Marta, não hesites: usa o acento e estarás aderindo ao sentimento da grande maioria dos brasileiros. Abraço. Prof. Moreno
Depois do Acordo:
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