Um leitor pergunta qual a origem do vocábulo estepe, para designar o pneu extra que levamos na mala do carro. No Aurélio, encontro a magra informação de que viria do Inglês step; fonologicamente, é um bom palpite, mas semanticamente fica muito difícil ligar step (“degrau”) ao pneu sobressalente (alguns modelos primitivos de automóvel tinham o estepe fixado do lado da carroceria, perto do degrau de subir, mas é uma tênue relação). No Houaiss, o meu dicionário preferido, esbarro com um delírio: seria uma deformação da expressão spare tire (“pneu sobressalente”)! Acho que esse verbete não foi revisado pelo mestre, que não ia dar uma pedrada dessas, pois ia ter de suar sangue para explicar qual foi a mágica que levou o povo brasileiro a mudar para estepe uma expressão que se pronuncia /spértaire/!
Onde fui encontrar melhor pista? No interessantíssimo O Romance das Palavras, do meu sempre citado mestre Celso Luft (edição da Ática), em que ele levanta a hipótese de uma tal stepney wheel, acessório muito usado nos automóveis primitivos. A partir daí, coloquei em ação os mecanismos de busca nesta infinita rede de conhecimento que é a internet, e bingo! Descobri que o primeiro modelo de roda sobressalente para automóveis foi concebido por um mecânico galês, Walter Davies, que desenhou a famosa Stepney Spare Motor Wheel, produzida a partir de 1904 e distribuída no mundo inteiro. Não encontrei nenhuma ilustração da geringonça, mas ela é descrita como uma espécie de pneu de aro mais fino, que era preso por grampos, temporariamente, ao pneu que tinha furado. Segundo o sítio da BBC de Londres, o sucesso da invenção foi muito grande, tendo sido montada uma fábrica que produzia cerca de 2.000 unidades por mês. Ela chega a aparecer textualmente numa conhecida obra da literatura inglesa, Howard’s End, escrito por E.M. Forster (e filmado por James Ivory), onde o personagem diz ao seu motorista para não esquecer a stepney wheel. No entanto, pelo que se pode ver, tanto o Reino Unido quanto os EUA abandonaram o termo, preferindo o atual spare tire (ou tyre).
Acontece que uma forte lei da Lingüística determina que as mudanças na periferia do sistema sejam sempre mais fracas (e mais lentas) do que no seu núcleo; isso é o que explica, por exemplo, por que o homem dos cafundós sempre utiliza formas que nos parecem antiquadas e que só conhecíamos de ler os autores do passado. Assim, não é surpresa encontrar eventualmente o termo stepney em lugares onde os ingleses marcaram sua presença, como Barbados ou Canadá; a grande freguesa, contudo, é a gigantesca Índia, que o utiliza exatamente como o nosso estepe; basta entrar em qualquer sítio automobilístico indiano para ver que eles chama o pneu sobressalente de stepney tyre.
Acho que só pode ser essa a explicação para o nosso estepe. E tem mais: como as palavras costumam vir atrás das coisas (res verba sequuntur, no dizer do poeta latino Horácio), e os primeiros automóveis que entraram no Brasil vieram da França, adquirimos um vocabulário automobilístico completamente afrancesado: capô, marcha à ré, embreagem, derrapar, giclê, chassi, chofer. Em vista disso, a entrada de um termo do Inglês como stepney só pode mesmo ter acontecido se a famosa roda chegou a ser bem utilizada por aqui; aposto que uma pesquisa entre os historiadores do nosso automobilismo iria confirmar essa suposição. A partir daí, fica muito fácil: explicar a perda da sílaba final de /stépney/ é moleza, já que a fala brasileira costuma podar as sílabas que ficam depois da tônica; de /step/, a única resultante possível é estepe, da mesma forma que /sport/ e /stress/ deram, respectivamente, esporte e estresse.
P.S.: Com os leitores que tenho, nada me faltará! Pois não é que Clarice Lopes, de Montes Claros (MG), descobriu uma ilustração da geringonça e veio gentilmente compartilhá-la conosco? Quem quiser ver como era, dê uma olhada em http://www.gtj.org.uk/en/small/item/GTJ11386/
P.S. 2: Ora, ora, pois não é que o pneu sobressalente é chamado, na ilha da Madeira, de stefan? Segundo os locais, o termo deriva exatamente da roda stepney…