Que palavras temos à nossa disposição quando queremos fazer uma referência vaga ou genérica a alguém, ou falar de uma pessoa cujo nome desconhecemos? Este recurso existe em todas as línguas. No Inglês, usa-se uma forma proveniente da tradição da linguagem legal, que imortalizou um hipotético John Doe (feminino, Jane Doe) que representaria um queixoso mantido no anonimato; no mesmo espírito, o réu desconhecido era chamado de Richard Roe. Os fãs do cinema americano devem saber que o título original da comédia Adorável Vagabundo (1941, com Gary Cooper e Barbara Stanwyck), um dos grandes sucessos de Frank Capra, é Meet John Doe. O Francês usa un tel, une telle: “Nós a vimos abraçada a un tel”; “Imaginemos que Monsieur Un Tel, comerciante de vinhos em Bordéus, resolva fazer negócios com os importadores americanos”. O Latim tem o seu quidam (diga /cuí-dam/, isto é, como a forma verbal cuidam, só que com a tônica no I), vocábulo que é aproveitado em todas as línguas ocidentais, inclusive a nossa: “Não se pode sair do hotel sem ser abordado por um quidam na primeira esquina”. Aurélio e Antenor Nascentes recomendam aqui a grafia qüidam (com um trema, que, aqui, realmente vai fazer falta quando adotarmos integralmente o Acordo Ortográfico).
No Português, as três formas mais usadas para essa designação incerta são nossos habituais Fulano, Beltrano e Sicrano. Fulano vem do árabe fulân (“tal”). Corominas nos diz que no Espanhol do séc. XIII fulano era ainda empregado como adjetivo (fulano lugar, fulana ilha), passando depois à função que tem hoje. Pela evolução normal do Português, fulano deu fuão, mas nossa preferência se fixou na forma primitiva, talvez por influência castelhana. Beltrano, nos ensina Luft, veio do nome próprio Beltrão (Esp. Beltrán; Fr. Bertrand), nome tornado extremamente popular na Península Ibérica pelo ciclo carolíngio das novelas de cavalaria. A terminação em –ano veio, certamente, por analogia com fulano. Para fechar a série, apareceu um sicrano, forma de origem misteriosa, a julgar pelos palpites totalmente inseguros dos etimologistas.
É claro que, exatamente por indicar que o nome verdadeiro não é digno de ser guardado ou mencionado, todas essas denominações carregam, em grau menor ou maior, um toque depreciativo. Morais, em seu dicionário (1813), já apontava essa conotação, considerando o uso de fulano uma verdadeira descortesia. Irremediavelmente pejorativas são as variantes da linguagem coloquial fulano-dos-anzóis, fulano-dos-anzóis-carapuça, fulano-dos-grudes. Nossa língua criou formas mais depreciativas ainda, como joão ninguém, zé ninguém, zé dos anzóis, zé da véstia. Antenor Nascentes (Tesouro da Fraseologia Brasileira) fala de um Fidélis Teles de Meireles Queles. Luís Câmara Cascudo (Locuções Tradicionais no Brasil) registra ainda Beldroega e Mequetrefe. João Ribeiro (Frases Feitas) menciona um vulgaríssimo Fulustreco de Abreu. A grande quantidade de opções parece indicar a importância que nossa cultura dá ao nome (e à sua desqualificação). Com certeza deve haver muitas outras formas para essa mesma função; numa rápida pesquisa no Aurélio, por exemplo, encontrei ainda patrasana (talvez vindo do Italiano partigiano) e passanito. Quem souber de outros, que mande para esta página.