Com a devida vénia, mas o professor confundiu-me… ou os outros… Sou português de 51 anos a viver em S. Paulo há apenas 4 anos. Aprendi na Escola Primária (portuguesa) que o masculino de abelha era zângão e eis que me deparo com esta sua resposta: “Tomemos a abelha como exemplo: o macho da espécie é raro e tem outra palavra para designá-lo, o zangão. Do ponto de vista gramatical, porém, abelha NÃO tem masculino (só do ponto de vista biológico)” (Masculino de formiga).Também o site português Priberam, que para além de nos oferecer a consulta gratuita do Dicionário de Língua Portuguesa nos dá umas dicas gramaticais, diz que zângão é o masculino (de radical diferente) de abelha. E agora? Em quem devo acreditar? Se me permite, e após confirmação no “conceituado” Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, zangão é bem diferente de zângão
António N. – São Paulo
Meu caro António: primeiro, vamos ao Ciberdúvidas. Como em Portugal a forma preferida é zângão (para o inseto), zangão (o que anda zangado) parece ser um vocábulo diferente. Como aqui no Brasil usamos zangão para ambos, consideramos os dois a mesma palavra. O dicionário Houaiss, atualmente o que temos de melhor em lexicografia do Português (deste e do outro lado do Atlântico), traz um extenso verbete para zangão, com todos esses significados incluídos, e registra, no final, a possibilidade de se usar a “variante” zângão. Trata-se, portanto, de uma questão de ponto de vista: quem olha daqui, vê uma só palavra com vários significados; quem olha de lá, vê duas palavras diferentes. Escolhe o lado que melhor te aprouver.
Quanto à questão de zangão ser o feminino de abelha, esse é um equívoco clássico da gramática tradicional, e que pode ser tolerado em autores que tenham escrito suas obras antes de 1965. Depois dessa data, com a divulgação da teoria estruturalista (hoje, já ultrapassada por dezenas de teorias mais modernas) – e, no caso do Português, com as análises fundamentais feitas por Joaquim Mattoso Câmara Jr., não se admite que um estudioso confunda “sexo biológico” com “gênero gramatical”. Que o zangão é macho biológico da abelha, qualquer garoto que tenha passado algumas manhãs no jardim deve saber muito bem; isso é sexo. No entanto, do ponto de vista do gênero gramatical, abelha não tem masculino, nem zangão tem feminino. O gênero, numa língua como a nossa, é marcado pela desinência (ou sufixo flexional) que fica à direita do radical. Menino, menina; lobo, loba; rato, rata; mestre, mestra; cantor, cantora – aqui temos pares masculino/feminino marcados gramaticalmente pela presença da vogal “A” para o feminino. Agora, em homem, mulher; bode, cabra; boi, vaca; abelha, zangão, temos pares macho/fêmea biológicos, mas não temos gênero gramatical marcado por desinência. Foi por isso que fiz aquela afirmativa que estranhaste: “Do ponto de vista gramatical, porém, abelha NÃO tem masculino (só do ponto de vista biológico)”.
Em suma: para distinguir o macho da fêmea dos seres sexuados, nosso idioma se vale de vários mecanismos diferentes:
(1) usa a flexão de gênero (masculino/feminino) marcada pela desinência: pato e pata; leitor e leitora.
(2) recorre a algum sufixo derivacional especializado: imperador e imperatriz, conde e condessa;
(3) recorre a palavras diferentes, uma para o macho, outra para a fêmea: boi e vaca, dama e cavalheiro;
(4) recorre ao acréscimo de “macho” ou “fêmea” ao vocábulo invariável: cobra macho, cobra fêmea.
A abelha se enquadra, como vês, na hipótese (3), em que fica bem marcada a diferença biológica, mas não se pode falar em diferença de gênero gramatical. Agora, não te apoquentes com isso. Como tu, eu também, no meu tempo de escola, aprendi que homem era o masculino de mulher, e assim por diante – mas eu usava a gramática do Rocha Lima, na edição de 1958, e os meus professores haviam estudado por autores mais tradicionais ainda. Hoje, em pleno séc. XXI, no entanto, só continua a ensinar assim quem não passou, no Curso de Letras, por uma cadeira de Morfologia que mereça o nome que tem. Aliás, aqui vai um segredo profissional: quando sou chamado a avaliar livros didáticos para adoção no colégio que coordeno, esse é um dos itens que eu sempre verifico. A forma como o autor expõe essa parte do conteúdo (entre outros) é, para mim, um valioso indicador do tipo de formação que ele teve. Abraço. Prof. Moreno