Professor Moreno: li sua explicação sobre o plural dos compostos. Concordo que, em vale-compras, a palavra vale seja substantivo. Mas acho que ela também pode ser interpretada com verbo (isso vale uma compra). Dessa forma, as duas formas (vales-compra e vale-compras) não deveriam estar corretas?
Ademar Q. – Goiânia
Meu caro Ademar, a tua pergunta bate exatamente no prego: é tão fluida a natureza de nossos vocábulos compostos que são poucas as afirmações definitivas que podemos fazer sobre eles – ao contrário dos vocábulos simples, muito mais fáceis de sistematizar, cujo comportamento segue princípios que o falante termina “adivinhando”. Nos substantivos do Português, por exemplo, é bem definida a oposição entre o plural, marcado pelo “S”, e o singular, reconhecido exatamente pela ausência dele. Não nos incomodamos com os raríssimos substantivos que têm o “S” mesmo no singular (como pires ou lápis), embora falantes mais simples, sem instrução, muitas vezes interpretem essas formas como pertencentes ao plural e criem aqueles ingênuos singulares que nos fazem sorrir: “*quebrei um pir“, “*perdi meu lápi” (análogo a faquir, faquires e táxi, táxis). Deves perceber que esses erros não se devem ao desconhecimento da regra do plural, mas sim à interpretação errônea dos fatos lingüísticos.
A importância dessa interpretação, por parte do falante, é decuplicada no caso dos compostos. Como eu fiz questão de frisar no artigo que mencionas, os compostos não são carne, nem peixe: eles ficam num limbo intermediário entre um vocábulo simples e unitário (como cadeira, palha) e um elemento da estrutura sintática, formado por vários vocábulos (como “cadeira de palha“). Graficamente, um composto atua como um vocábulo uno, pois fica isolado entre dois espaços em branco; ora, por que não acrescentamos, simplesmente, um “S” no final de guarda-noturno, pé-de-moleque, hora–aula, formando *guarda-noturnos, *pé-de-moleques e *hora-aulas? Exatamente porque sentimos a presença da estrutura sintática que lhe deu origem. Fazemos guardas-noturnos porque temos aí uma banal seqüência de um substantivo acompanhado de seu adjetivo modificador; fazemos pés-de-moleque porque estamos flexionando o núcleo de um antigo sintagma nominal (como cartas de baralho, flores de papel, etc.); fazemos horas-aula pela mesma razão, já que a presença do substantivo à direita, agindo como especificador (“aula”), é explicada pela estrutura subjacente “horas de aula”.
Quando vamos operar com um vocábulo composto, essa “desmontagem” mental pode variar de um falante para o outro, criando-se assim diferentes conseqüências flexionais. Se eu decompuser vale-refeição como “vale uma refeição”, terei enxergado aqui uma estrutura [verbo + substantivo] — análoga a tira-gosto, quebra-pedra, porta-estandarte —, que só poderá ser flexionada no substantivo: vale-refeições. Se, no entanto, eu interpretá-lo como “um vale destinado à refeição”, ele terá a estrutura [substantivo+ especificador] – análogo a operário-padrão, hora-aula -, que só deve ser flexionada no primeiro elemento: vales-refeição.
No caso particular de vale-compra, vale-refeição, etc., repito que opto sempre pela interpretação [substantivo + especificador], com o conseqüente plural vales-compra, vales-refeição. A meu ver, este vale que aqui é uma substantivação formada a partir do verbo valer: o papel onde se escrevia (e ainda se escreve) “vale um refrigerante”, “vale cem reais”, “vale uma entrada para o domingo”, etc. passou a ter esse nome, assim como aconteceu com o habite-se ou o atenda-se.
Além disso, quando um composto é formado de [verbo + substantivo], sempre pressupomos um sujeito que complete essa estrutura: porta-estandarte é, no fundo, “alguém que porta o estandarte”; bate-estaca é “um aparelho que bate a estaca”. Isso impede que façamos uma referência abreviada ao composto, usando apenas o seu primeiro elemento (“*lá vem o porta“, “*ouça o bate“), o que pode, no entanto, ocorrer em compostos cujo núcleo é um substantivo: o guarda-civil, o guarda; o mestre-escola, o mestre; o vale-transporte, o vale; e assim por diante.
Sempre que encontrares dúvida ou hesitação na flexão de um composto, podes ter certeza de que isso foi motivado pela possibilidade, naquele determinado caso, de uma dupla interpretação sintática de seus elementos constituintes. Abraço. Prof. Moreno
Depois do Acordo:
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