Certa vez, enquanto jogava com a minha família um jogo que tinha como objetivo aprimorar os nossos conhecimentos da Língua Portuguesa, nós nos deparamos com uma ficha que dizia que o correto é “a cobra macha“, “o elefante fêmeo“. Eu até então pensava que fêmea e macho eram palavra que não variavam e gênero, mas isto me deixou em dúvida… Espero que possas esclarecer isto. Obrigada!
Roberta – Sapucaia do Sul (RS)
Minha cara Roberta: é verdade que alguns autores (não os mais importantes) andam defendendo que o vocábulo macho (e fêmea também) deveria concordar com o gênero do substantivo que acompanham, porque estariam valendo, nessa caso, como um verdadeiro adjetivo: onça macha, tatu fêmeo, mas felizmente essa posição começa a ser vista hoje como uma excentricidade sem fundamento. O macho da onça: a onça macho. A fêmea do tatu: o tatu fêmea. Nosso imortal Luís Gonzaga sempre cantou “Paraíba masculina, mulher macho sim senhor”. Queres um conselho, Roberta? Fica com os autores mais esclarecidos, que não flexionam nem macho, nem fêmea.
Agora, a discussão do problema. Na minha experiência, quando os falantes divergem quanto a uma determinada concordância, é que existe a possibilidade de interpretar os dados do idioma de duas maneiras diversas. Quem, seguindo a tradição, interpreta macho e fêmea como substantivos, vê aqui verdadeiros vocábulos compostos com a estrutura [subst. + subst.], como sofá-cama ou homem-rã, e indica o gênero do animal como girafa-macho, girafa-fêmea, gorila-macho, gorila-fêmea (friso que o uso — ou não — do hífen é, aqui, uma questão irrelevante, que depende somente das preferências de quem estiver escrevendo).
No entanto, há quem avalie macho e fêmea de outro jeito: sente esses vocábulos como adjetivos biformes e estabelece sua concordância com o núcleo do composto, à sua esquerda: girafa—macha, gorila-fêmeo. Isso não é tão estranho assim: no Português do Brasil, percebe-se a tendência de interpretar (em muitos casos, “re-interpretar”) os vocábulos compostos segundo as relações mais freqüentes dentro do sintagma nominal. Por isso, compostos do tipo [subst.+subst.] são muitas vezes reinterpretados como [subst.+ adj.], ocorrendo, conseqüentemente, a concordância natural do segundo elemento com o primeiro. Na fala espontânea das pessoas simples, já se registraram casos em que “pedra—raio” (um dos nomes populares para os meteoritos) passa a “pedra—raia“; “sapo-concha” (denominação popular para o cágado) passa a “sapo-concho”; “pêra-marmelo” passa a “pêra—marmela“; e até uma “rosa [do] padre“, que passa a “rosa-padra“!
A flexão de macho e de fêmea, contudo, não fica restrita à expressão das pessoas simples: encontrei-a em exemplos que vão de um manual de manutenção de computador (“Você precisa de um cabo com um conector fêmeo de 25 pinos”) a um artigo sobre a vida em outras dimensões, que fala num ser iluminado, especial, que esteve entre nós até “se desmaterializar e partir para a constelação da Hidra Macha, onde hoje vive” (o Doutor espera que isso fique bem longe daqui!). Até mesmo na pena de um Antônio Feliciano de Castilho, que os gramáticos atrasados consideravam um dos modelos clássicos de nosso idioma, fui encontrar a danada flexão, na tradução um tanto grosseira que este autor português fez da canção de Mefistófeles na cena da taberna do “Fausto“, de Goethe:
Catava-se um rei, quando acha
Nas suas meias reais,
Uma grande pulga macha,
Pai-avô e Adão das mais …
A grande maioria dos escritores e dos estudiosos da língua continua, entretanto, preferindo macho e fêmea como invariáveis. Outra coisa é usar macha no sentido de “valente, viril”; aí sim, temos um adjetivo que vai ficando mais útil a cada dia — e o que assegura a permanência e a difusão de qualquer novidade lingüística é ser ela oportuna e funcional. João Ubaldo Ribeiro usou-o muito bem quando nos conta que sua irmã Sônia, “aliás, como todas as mulheres da família, muito mais macha do que todos os machos da família, encheu de bala a carroceria de um caminhão que arranhou o carro dela na estrada e cujo motorista deu risada”. Perfeito! Mário Palmério faz o pescador Gerôncio expressar sua confiança na linha que estão usando: “Conhecia o tamanho daqueles surubins do rebojo e, pelo tinido da linha, adivinhava o animal que o Dr. Paulo havia ferrado. Tem perigo não, Dr. Paulo. Ei, linhinha macha!”. Na imprensa, catei um torcedor que resolveu encarar a torcida adversária, na base do “… vamos ver se a galera é tão macha quanto diz!”, e um consciente marido que aponta sua mulher para a repórter e afirma que “aquela ali é a parte macha do casal”.
No Inglês, acontece algo semelhante: como os substantivos deles não têm duas formas para marcar o gênero, eles usam o pronome he ou she anteposto: he-ant, she-gorilla, he-giraffe. Os Correios Britânicos encontraram uma daquelas cartas infantis endereçadas a Deus, cujo autor estava preocupado em saber o sexo da baleia que engoliu Jonas: “Querido Deus, quando Jonas estava na baleia, era uma baleia-macho (he-whale) ou uma baleia-fêmea (she-whale)?”. O pior, para eles, é que as dificuldades não se resumem aos animais, como no Português. Basta dizer que o nosso prático diaba fica, na língua deles, um esquisito she-devil. Abraço. Prof. Moreno
Depois do Acordo: freqüentes> frequentes
conseqüentemente> consequentemente
pêra> pera
lingüística> linguística