Mark Twain fala mal do Alemão

Por uma dessas regras obscuras do Universo, quanto pior uma pessoa fala o Português, mais ferozmente ela se põe a criticá-lo, a apontar-lhe defeitos e (atrevimento típico da ignorância) a sugerir profundas alterações que tornariam “melhor” a língua de Vieira e de Machado… Ora, se isso é um sinal seguro de estupidez, bem diferente é falar mal da língua dos outros. Muitos foram os escritores que se dedicaram a esse tipo especial de maledicência, por trás da qual transparece, mal e mal disfarçada, a intenção de atingir o povo e a cultura que utilizam o idioma criticado. Não tenho a menor vocação para acirrar os ânimos entre as nações deste Planeta; contudo, como não posso deixar de admirar todas as manifestações do gênio, do talento e do espírito humanos, traduzo abaixo um trecho do artigo em que Mark Twain desce o porrete no idioma alemão. Em nome da eqüidade, prometo que, em breve, vai figurar nesta mesma página algum artigo criticando o Inglês — e o Francês, e o Latim, e o próprio Grego. Todas já receberam a sua ração de veneno.

A Medonha Língua Alemã

Mark Twain

“(…) Os alemães usam um outro tipo de intercalação que consiste em dividir um verbo em duas partes e colocar metade dele no começo de um excitante capítulo e a outra metade no seu final. Pode alguém conceber algo mais confuso que isso? Essas coisas são chamadas verbos separáveis. A gramática alemã está infestada com esses verbos separáveis, e quanto mais longe conseguir deixar uma parte da outra, mais feliz vai ficar o autor desse crime. Um dos favoritos é reiste…ab — que significa “partiu”. Aqui vai um exemplo que eu catei de um romance e transpus para nossa língua: “Estando agora as malas prontas, ele PAR — depois de beijar sua mãe e suas irmãs, e mais uma vez apertar ao peito sua Gretchen adorada, que, estida de singela musselina branca, com uma única glicínia entrelaçada nas generosas tranças de seu rico cabelo castanho, tinha cambaleado escada abaixo, ainda pálida com o terror e a excitação da noite passada, mas ansiosa por apoiar sua pobre cabeça dolorida ainda uma última vez no peito daquele a quem ela amava mais ainda do que a própria vida — TIU” .

“Não devemos, contudo, perder muito tempo com esses verbos, porque isso pode nos levar a perder a cabeça; se alguém se fixa nisso e não é avisado das conseqüências, vai terminando amolecendo o miolo — ou petrificando-o. Os pronomes pessoais são outro fértil aborrecimento na língua alemã, e deveriam ser excluídos. Por exemplo, o mesmo som, sie, significa você, e significa ela, e significa a ela, e significa ele (neutro), e significa eles, e significa a eles. Pensem na pobreza esfarrapada de uma língua que obriga uma palavra a fazer o trabalho de seis — e estou falando de uma porcariazinha dessas com apenas três letras! Mas, acima de tudo, pensem na irritação de nunca saber qual desses significados o falante está tentando me transmitir! Isso explica por que, sempre que uma pessoa me diz sie, eu tento matá-lo — se não for um amigo meu, é claro.

“Agora, observem os adjetivos: aqui está um caso em que a simplicidade do Inglês teria sido de grande vantagem; por isso mesmo — não podia haver outra razão! — o inventor dessa língua complicou tudo o que podia. Quando queremos falar de nosso “bom amigo” ou “bons amigos”, em nossa abençoada língua, usamos uma só forma e não sentimos remorso com isso [em Inglês: “our good friend or friends“], mas na língua alemã é diferente. Quando um alemão deita as garras num adjetivo, ele vai decliná-lo até que seu próprio juízo entre em declínio. É tão ruim quanto Latim. Ele dirá, por exemplo, no singular — Nominativo: Mein guter Freund, meu bom amigo. Genitivo: Meines guten Freundes, do meu bom amigo. Dativo: Meinem guten Freund, ao meu bom amigo. Acusativo: Meinen guten Freund, meus bons amigos. No plural, muda tudo: Nominativo: Meine guten Freunde, meus bons amigos. Genitivo: Meiner guten Freunde, dos meus bons amigos. Dativo: Meinem guten Freunden, aos meus bons amigos. E por aí vai — e vá o candidato ao hospício tentar memorizar essas variações, e vocês vão ver como ele se elege rápido! A única coisa que pode evitar essa encrenca toda é andar mesmo pela Alemanha sem ter amigo nenhum. Claro que eu só mostrei o estorvo que é declinar um bom amigo no masculino; isso é apenas a terça parte da façanha, pois temos de aprender toda uma outra variedade de distorções do adjetivo quando se tratar do feminino ou do neutro. O pior é que existem mais adjetivos nesta língua do que gatos pretos na Suíça, e todos devem ser caprichosamente declinados do modo como vimos no exemplo acima. Ouvi um estudante americano em Heildelberg afirmar, num tom resignado, que preferia declinar dois convites para beber do que um único adjetivo alemão.

“O inventor dessa língua parece ter se esforçado ao máximo para complicá-la. Por exemplo, quando referimos despreocupadamente uma casa, Haus, ou um cavalo, Pferd, ou um cachorro, Hund, escrevemos assim estas palavras. Contudo, se nos referimos a elas no caso Dativo, temos de grudar-lhes um tolo E desnecessário: Hause, Pferde, Hunde. Ora, como esse E muitas vezes indica o plural, como entre nós fazemos com o S, o pobre aprendiz de alemão vai levar no mínimo um mês pensando que são gêmeos um único cachorro Dativo; por outro lado, muito estudante novato, sempre com pouco dinheiro, comprou e pagou por dois cachorros mas acabou só levando um, porque ele, pensando burramente estar usando o plural, comprou o cachorro no Dativo singular — o que deixa a lei do lado do vendedor, é claro, pelas estritas regras da Gramática, não cabendo nenhuma ação legal para recuperar o dinheiro.”

E por aí a fora. 

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