Os primeiros etimologistas acreditavam que a busca pela origem de uma palavra fatalmente levaria a seu significado mais verdadeiro. Puro engano; muita coisa na linguagem é arbitrário e casual, e há dezenas de palavras cuja formação ocorreu por processos inesperados. Em muitas expressões, os falantes podem desprezar o núcleo e dar preferência a um elemento secundário, agindo como aquelas crianças que deixam de lado o presente e ficam brincando com a caixa. Por exemplo, o vocábulo latino para estrada era via. Algumas eram de simples chão batido, outras eram cobertas de cascalho e as mais importantes eram largas e pavimentadas com pedra, chamadas de via strata, “vias cobertas” (de sterno, “cobrir, pavimentar”). Daí derivou o nosso estrada, que, indiferente ao significado que tinha na origem, hoje pode ser de chão batido… Veja abaixo alguns desses casos em que o nome que sobreviveu não era exatamente o que a lógica escolheria.
data — Data, no Latim, era simplesmente o particípio do verbo dare (“dar”), que traduzimos literalmente como “dada”. Vem da fórmula usada para iniciar ou encerrar uma carta, informando ao destinatário quando e onde ela tinha sido escrita ou entregue ao mensageiro. Por exemplo, Data Romae Id. Mar. significava “dada em Roma, em 15 de março”. No Latim medieval, começou a indicar-se apenas o dia e o local, como até hoje fazemos — “Roma, 15 de março”. O vocábulo data, a partir de então, transformou-se em substantivo e passou a designar a indicação de um dia específico.
missa — O substantivo missa vem do verbo latino mittere (“enviar, mandar, dispensar”), o mesmo que originou missão e míssil. Nas igrejas primitivas, nos primórdios do Cristianismo, o culto era dividido em duas partes: a primeira, composta de orações, cantos e de um sermão, era aberta a todos; a segunda (a eucaristia) era reservada aos cristãos batizados. Por isso, dizia-se ao final da 1ª parte, a fórmula “Ite, missa est“, que significa, aproximadamente, “Podem ir, [a congregação] está dispensada”. Pouco a pouco, a palavra que assinalava especificamente o momento da dispensa passou a designar toda a cerimônia.
propaganda — Vem do latim propagare, usado inicialmente em agricultura, para designar a reprodução das mudas das parreiras. Em 1622, o Papa Gregório XV instituiu uma comissão de cardeais para difundir o catolicismo nos países não-católicos — a Congregatio de Propaganda Fide (“Congregação para Propagar a Fé”), referida informalmente como a Propaganda. Logo o termo passou a ser usado para qualquer organização empenhada em difundir doutrinas religiosas ou políticas. Nas guerras do séc. XX, a propaganda foi largamente utilizada para elevar o moral dos soldados e desmoralizar os adversários, ficando claro que, diferentemente da publicidade, que procura divulgar e vender um produto, a propaganda procura influenciar os espíritos. Hoje há propaganda contra e a favor de tudo, chegando a haver propaganda anti-religiosa, o que é uma ironia etimológica.
torrente — Designa uma corrente de água muito rápida e impetuosa; é o que temos em mente quando dizemos que caíram chuvas torrenciais. No entanto, paradoxalmente, provém da mesma base latina que produziu torrar e tórrido, vocábulos associados ao fogo, e não à água. Em latim, torrens, torrentis — particípio do verbo torrere, “queimar, torrar, ferver” — foi usado metaforicamente para descrever as águas rápidas e turbulentas que, espumantes e cheias de borbulhas, dão a impressão de estar fervendo.
tênis — O nome do esporte já tem uma origem interessante: vem do francês tenez, imperativo de tenir, expressão pronunciada pelo jogador quando dava o saque, que podemos traduzir livremente como “Toma!”; daí passou para o inglês tennis, nome que se consagrou. No séc. XX, junto com o esporte, chegaram ao Brasil as raquetes e os sapatos de tênis (em inglês, até hoje, tennis shoes), mas logo tênis passou a designar o próprio calçado, permitindo que tenhamos, para espanto dos estrangeiros que passam por aqui, tênis para caminhar, tênis para aeróbica, tênis para futebol de salão e até mesmo tênis para tênis.
Pêssego — Os romanos costumavam usar o vocábulo malum (“maçã”) também como um sinônimo genérico para fruto. Assim, o marmelo era o malum cydonium (“fruto de Cidônia”, uma cidade de Creta), a romã era o malum granatum (“fruto com grãos”), a laranja era o malum aurantium (“fruto dourado”). O pêssego era chamado de malum persicum (“fruto da Pérsia”), porque os romanos pensavam que ele tivesse sido trazido de lá pelos soldados de Alexandre Magno. O adjetivo persicum tornou-se pessicum, pessica e mais tarde pesca, produzindo pêssego no português, pêche no francês, peach no inglês e pesca no italiano. Portanto, é, embora não pareça, irmão de persa e persiana.
fígado — Os franceses, gulosos incorrigíveis, submetem a um cruel regime de superalimentação os gansos que utilizam no preparo do famoso patê de foie gras (literalmente, “fígado gordo”). Muito antes deles, no entanto, os romanos mais refinados já costumavam engordar os gansos com figos em passa, obtendo assim a requintada iguaria que chamavam de jecur ficatum (jecur é “fígado”; ficatum vem de ficus, “figo”; a tradução seria, portanto, algo assim como “fígado com figos”). Com o tempo, jecur foi abandonado e só restou ficatum, que produziu fígado no português, hígado no espanhol e fegato no italiano. Por isso, quando uma pessoa simples se queixa erroneamente de “dor no figo”, estamos diante de uma curiosa volta ao passado da palavra.