O livro do MEC (3)

O linguista dedica-se a observar e analisar os fatos da linguagem para melhor entendê-la; o seu compromisso é com a CIÊNCIA. Pois nós, professores de Português, não somos nem pretendemos ser cientistas.Longe disso; o compromisso que temos é com a CULTURA.

 

Gostaria de lembrar meu prezado leitor de que procurei, nas colunas anteriores, descrever, de forma simples mas honesta, a diferença essencial que existe entre a função do lingüista, de um lado, e a do professor de Português, do outro. O lingüista trabalha para expandir os limites da teoria, dedicando-se a observar e analisar os fatos da linguagem para melhor entendê-la; o seu compromisso é com a ciência. Pois nós, professores de Português, não somos, nem pretendemos ser cientistas. Longe disso; o compromisso que temos é com a cultura. Nossa função (eu preferiria o termo missão, mas já o empregaram tantas vezes como pretexto para explorar nossa classe que, vamos convir, ele ficou imprestável) — nossa função, repito, é ensinar o aluno a se apropriar do magnífico idioma que herdamos e usá-lo para seu crescimento pessoal e profissional. Nós somos os encarregados de fazer esse patrimônio comum passar de uma geração para a outra; assim fizeram um dia comigo e com você, caro leitor; assim espero que meus alunos venham a fazê-lo com meus netos e bisnetos.

É por causa disso que o professor de Português, ao contrário do lingüista, jamais poderá abandonar esta perspectiva cultural e histórica. A língua em que escrevo esta coluna de hoje vem sendo usada há quase mil anos, e isso faz muita diferença. É uma belíssima construção de quase um milhão de palavras, com raízes nas duas grandes línguas do passado, o Latim e o Grego; foi usada por reis e camponeses, por santos e bandidos, por vítimas e carrascos da Inquisição; atravessou desertos e oceanos, passou por épocas e lugares distantes e se enraizou em vários pontos do planeta. Esta é a idéia que precisamos transmitir aos alunos: é a língua portuguesa que nos faz ocidentais e que nos torna herdeiros da Grécia e de Roma, do Velho e do Novo Testamento, da cristandade, da matemática decimal, do calendário gregoriano e da Revolução Francesa.

Em toda a parte — na ortografia, na formação de palavras, na estrutura do nome ou do verbo, no emprego dos pronomes, na conjugação verbal, na sintaxe da frase — em toda a parte, repito, nossa língua carrega marcas deste passado e desta riqueza, e um bom professor de Português  deve estar preparado para ensinar o aluno a reconhecê-las e a entender sua motivação. Há quase dez anos mantenho no ar o saite www.sualingua.com.br, e aprendi, com os milhares de consultas feitas pelos leitores, a identificar dezenas de áreas em que só a orientação segura de um professor pode desmanchar os “coágulos” que atrapalham a compreensão do usuário interessado e sua adesão ao que chamamos de norma culta.

É imprescindível, por exemplo, que o aluno seja informado de que o vós também pode ser usado para designar a segunda pessoa do singular — ou ele vai ficar intrigado com muitos diálogos da obra de Alencar ou, mais simples ainda, não vai entender por que na Ave-Maria, que constitui claramente um discurso dirigido a uma só pessoa, a mãe de Jesus, consta “bendita sois vós entre as mulheres”. Da mesma forma, é indispensável um passeio histórico pelo absolutismo português para que o artigo definido el, que era de uso exclusivo do rei, não seja visto como uma aberração morfológica — assim como uma análise do estranho comportamento dos substantivos terminados em –ão, que têm apenas um singular para três plurais diferentes (mãos, leões, alemães), mostrará que a língua caminha, lenta mas inexoravelmente, para um plural genérico em –ões — o que, além de simplificar o modelo, explica por que uma palavra como corrimão já admite, além do esperado corrimãos (como mão, mãos), o cada vez mais comum corrimões.

O que vou dizer pode parecer uma verdadeira platitude, mas meu inocente leitor ficaria espantado se soubesse quanta gente procura negar o inegável: só poderemos manter esse diálogo com o aluno se ele dominar um vocabulário gramatical básico que nos permita falar com ele sobre a linguagem. Como podemos explicar a pontuação se ele não estiver familiarizado com os termos da sintaxe? Como fazê-lo perceber a racionalidade que está por trás de nossa acentuação gráfica se não pudermos recorrer a conceitos como sílaba tônica, ditongo, hiato ou semivogal? Isso leva a outra daquelas tarefas que precisamos realizar a qualquer custo: deixar o aluno familiarizado com uma terminologia lingüística que tenha livre curso em todas as escolas e em todos os livros didáticos do país. Ela já existe; embora esteja envelhecida e necessite de remendos, a NGB — a Nomenclatura Gramatical Brasileira — continua sendo uma presença indispensável nas aulas de Português. Por mais críticas que possamos fazer a ela (e não são poucas), ela é tão importante para o ensino do idioma que eu não hesitaria em chamar de irresponsável o professor que sonegá-la de seus alunos. (continua)

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