Subindo e descendo

Há palavras que estão coloridas por um forte matiz elogioso, enquanto outras são usadas principalmente para criticar. Comparando comerciante e traficante, somos obrigados a admitir que ambos exercem a mesma atividade — levar os produtos ao mercado e trocá-los por dinheiro —, mas o primeiro termo não tem a fortíssima conotação pejorativa do segundo. Em outras palavras, os dois vocábulos ocupam posições muito diferentes na escala valorativa, onde traficante é decididamente um vocábulo “do mal”.  Ocorre aqui, no entanto, a mesma mobilidade que encontramos na pirâmide social (ou no câmbio): essas posições não são fixas, e o que ontem estava em alta, hoje pode estar em baixa acelerada. Veremos abaixo exemplos conhecidos de palavras que subiram e palavras que desceram nessa escala de valores.

carroça — (desceu) — Vem do Italiano carrozza, através do Francês carrosse. Na origem, designava uma espécie de carruagem de quatro rodas, usada no transporte de passageiros; era um símbolo de luxo e de riqueza. No séc. XVII, o Padre Vieira ainda podia escrever que “o rei e a rainha passeiam juntos na mesma carroça“. A partir do século seguinte, no entanto, já começa a prevalecer o significado, que perdura até hoje, de “veículo reforçado para transporte de carga”. Como metáfora, o termo é muito usado para falar pejorativamente de automóveis: “a indústria automobilística brasileira fabricava verdadeiras carroças”.

charme — (subiu) — Vem do Francês, que foi buscá-lo no Latim carmen (“canto, poema”); designava, na linguagem jurídica e religiosa, uma fórmula em versos com supostos efeitos mágicos. Com o tempo, seu significado passou a abranger também os poderes sobrenaturais de um mago, bem como qualquer objeto que tivesse propriedades de trazer a sorte ou afastar o Mal (no Inglês, um dos sentidos de charm é “amuleto, talismã”). Afastando-se do mundo do oculto, o vocábulo passou a designar aquele fascínio que certas pessoas naturalmente exercem sobre os outros, tornando-se uma qualidade extremamente valorizada, pois o mundo passou a ser dividido entre os que têm e os que não tem charme.

colosso — (subiu) — Vem do grego kolossos, estatuetas usadas em rituais religiosos para representar pessoas ausentes, correspondendo aproximadamente aos bonequinhos do vodu. Eram feitos de todos os tamanhos e materiais, mas o termo passou a designar uma estátua gigantesca a partir da fama do Colosso de Rodes, uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo — uma imagem de Apolo de mais de 30m que dominava o porto de Rodes, no Mediterrâneo. Embora colosso, juntamente com o seu derivado colossal, ainda seja usado com o sentido de “muito grande” (fortuna colossal, obra colossal), o termo vem sofrendo uma evolução cada vez mais favorável e já figura na lista dos elogios modernos: um colosso de livro, uma idéia colossal.

famigerado — (desceu) — Vem do Latim famigeratus (“famoso, célebre, renomado”). Na origem, embora se referisse tanto à boa quanto à má fama, tinha uma conotação predominantemente positiva. Com o tempo, entretanto, passou a ser aplicado apenas com a intenção de criticar: “Os argentinos insistem em comparar Pelé ao famigerado Maradona”. Essa alteração de significado é o tema do genial conto Famigerado, de Guimarães Rosa, em que um médico de férias no sertão, para salvar a própria pele, convence um perigoso jagunço, a quem ele havia chamado de famigerado, de que o termo tem um sentido positivo e elogioso.

formidável — (subiu) — Vem do Latim formidabilis (“temível, assustador”). O dicionário de Bluteau (1712) diz que formidável é uma “coisa que se deve temer muito”; o dicionário de Morais, um século depois (1813), ainda concorda: formidável é o “que causa medo, temível”. Aos poucos, porém, o significado passou a “grande, imponente”, e daí a “espantoso, admirável”, já com a coloração elogiosa que o vocábulo ostenta atualmente. Uma frase como “O senhor tem uma filha formidável”, que hoje é recebida com sorrisos, causaria uma reação bem diferente no século dos Descobrimentos.

prestígio — (subiu) — Em Latim, praestigium significava “charlatanismo, impostura”; a forma feminina praestigiae designava as ilusões enganosas produzidas pelos truques dos mágicos e dos trapaceiros. Os romanos chamavam de praestigiosus (“prestigioso”) o enganador, o embusteiro. No Português, o dicionário de Morais (1813) ainda define prestígio como “ilusões, imaginações, fantasias”. Com o tempo, contudo, aconteceu a mesma evolução positiva de charme, passando a significar o poder e a influência que certas pessoas ou entidades conquistaram, por causa de suas qualidades invejáveis.

libertino — (desceu) — Em Roma, o termo libertinus (“liberto”) designava apenas o escravo que tinha conquistado a liberdade. No entanto, o sentido moderno começa a se configurar quando Calvino, em 1545, escreve contra a seita dos Libertinos, um movimento considerado herético porque abolia a noção de pecado, defendia a extinção da propriedade e pregava a liberdade sexual. No século XVII, o termo se amplia para incluir o indivíduo que se recusa a aceitar as limitações que a religião impõe ao seu pensamento ou à sua conduta. No entanto, como este pensamento livre implica uma maior liberdade de costumes, os autores moralistas deram ao termo a conotação pejorativa que tem hoje, de “devasso, dissoluto”.

tratante — (desceu) — Vem do Latim tractantis (“aquele que trata, que contrata”). No Português, tratante começou com o significado de “mercador; aquele que compra mercadorias para revendê-las”, como até hoje tem no espanhol: tratante de carvão, tratante de vinhos, tratante de ovelhas. No entanto, o termo degenerou como insulto, já aparecendo no dicionário de Morais (1813) para designar “aquele que faz negócio com ardis e tretas”. Machado de Assis, que produziu sua obra na segunda metade do século XIX, só usa tratante como forma de insulto.

 

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