Numa entrevista, ao falar da roupa que vestia, Dunga disse que seguia os sugerimentos de sua filha, que é estilista de moda. Ouvindo aquilo, o Brasil inteiro correu para o dicionário e, ao constatar que o termo não estava lá, extraiu do fato duas desastradas conclusões: primo, o tal vocábulo não existe; secundo, o Dunga fala tão errado quanto algumas importantes figuras desta Pindorama… Como era de esperar, alguns leitores escreveram perguntando o que eu achava disso tudo. Bem, em princípio eu sempre fico satisfeito com qualquer episódio que faça as pessoas se reencontrarem com o velho “amansa” que estava esquecido na estante, mas sou obrigado a meter a minha colher torta nesta tigela.
Em primeiro lugar, por trás da primeira conclusão está a ngênua de que o dicionário seja o repositório de todas as palavras existentes de nossa língua, uma espécie de cartório de registro de nascimentos onde os falantes podem conferir a existência ou não de um vocábulo. Nada mais falso; um dicionário é apenas uma seleção dos vocábulos que o seu autor considera mais importantes neste momento. Por exemplo, para que o Aurélio e o Houaiss pudessem ser editados como um volume único, os autores tiveram de fazer uma pesada seleção dos vocábulos que deveriam entrar — uma verdadeira lista de Schindler, onde nem sempre foram incluídas as palavras que mereciam. O Aurélio traz as palavras que Aurélio Buarque de Holanda escolheu; o Houaiss traz as palavras que Antônio Houaiss escolheu — e pronto!
Quem vai ao Houaiss encontra várias palavras que não aparecem no Aurélio: agronegócio, apagão, auditar, autolimpante, biopirataria, carteirada, cartelização, cartolagem, conspiratório, emancipacionista, fitossanitário, hidroginástica,mexível, meritocracia, parquímetro ou soropositivo. Essa diferença pode nos dizer alguma coisa sobre o tamanho e a cobertura dos dois dicionários, mas nada sobre as próprias palavras em si — assim como o fato de não encontrarmos bivolt, bloqueto, cadeirante, degravação, drogadição, drogadito, intensivista, fumódromo, mecatrônica ou rinsagem em nenhum dos dois não nos autoriza a concluir que esses vocábulos, vivíssimos em nosso idioma, não existam…
Em segundo lugar, não podemos afirmar que sugerimento esteja errado; acho horrível o termo, mas, como vamos ver, ele está rigorosamente dentro das formações possíveis por derivação, que é, quero frisar, a mais poderosa máquina de criar palavras do Português. O princípio é muito simples: de uma mesma base existente, formam-se novos substantivos, adjetivos ou verbos, pelo acréscimo de prefixos ou sufixos. Às vezes, temos à nossa disposição vários elementos para a mesma finalidade; por exemplo, para formar substantivos abstratos a partir de verbos, podemos escolher o sufixo -ura (feitura, leitura), ou –ção (realização, repetição), ou –mento (nascimento, recrutamento), ou –agem (regulagem, filtragem), entre outros. Saber uma língua, muito mais do que dominar uma lista de palavras, é conhecer esses elementos formadores e o conjunto de regras que nos permite combiná-los. É importante ressaltar o caráter aleatório dessas combinações; nada nos diz qual desses sufixos será usado para uma determinada base. Aqui ocorre uma escolha em que parecem intervir critérios que ainda não foram bem estudados. Por que recrutamento e não recrutação ou recrutagem? Por que filtragem e não filtramento ou filtração? Quantos verbos formados pelo sufixo –izar estão lá, no estoque virtual de nosso idioma, que ainda não vieram à luz? Quantos substantivos abstratos em –mento?
Em muitos casos, diferentes sufixos combinam com uma mesma base para formar vocábulos concorrentes, que passam a disputar a preferência dos falantes. No dicionário, encontramos, lado a lado, lavagem, lavação, lavamento e lavadura; sedução e seduzimento; desflorestamento e desflorestação; concluimento e conclusão. Submetidas ao invisível plebiscito popular, aquelas que parecem soar melhor vão conquistar mais falantes, mas isso não significa que as derrotadas vão desaparecer. Uns se dirigem ao bufê das palavras e compõem um prato com alface, palmito, tomate e salada de batatas (é uma combinação consagrada, assim como feijão, arroz e bife ou, na sobremesa, morango com chantili); outros vão lá e misturam no mesmo prato o feijão com a salada de batata, tudo isso com um pouco de sorvete por cima. Fazer mal não faz; é tudo uma questão de gosto. Os do primeiro tipo preferem escolha, conclusão, incômodo e sugestão; os do segundo, escolhimento, concluimento, descômodo e sugerimento. Depois, cada um com seu prato, voltam todos para a mesma mesa, para compartilhar a refeição do idioma — de preferência, em paz.
(da coluna O PRAZER DAS PALAVRAS– Jornal Zero Hora – 25/11/2006)