Mário Quintana tentou ensinar o Papa a pronunciar o nosso ÃO como se fosse um brasileiro — sem saber que, assim como as impressões digitais identificam o indivíduo, a pronúncia deste ditongo distingue quem é e quem não é falante nativo do Português.
Uma amável leitora de Pelotas manda uma cartinha à moda antiga, em papel de seda, com envelope e tudo, em que pergunta o que eu sei sobre a correspondência trocada entre Mário Quintana e o Papa João Paulo II. “Lembro que o senhor um dia escreveu sobre isso, mas esqueci de recortar e agora estou aflita”. Olha, prezada leitora, eu não sei se eles chegaram a se cartear; o que mencionei, certa feita, foram as instruções que o Mário escreveu (não sei se chegou a enviar…) para que o Papa pronunciasse corretamente o nosso ditongo “ão“. Reproduzo, com prazer: “Sendo Vossa Santidade um poliglota notável, vejo que não consegue pronunciar o famoso ão da Língua Portuguesa. E tomo a liberdade de esclarecê-lo sobre esta pronúncia. Considere o ão como dois monossílabos, “ã” mais “o“, e tente pronunciá-los cada vez mais rapidamente. Assim obterá o nosso ão. Esperando a sua benção, respeitosamente”.
Como eu disse na ocasião, é comovente ler essa ingênua sugestão que o Poeta fez a Sua Santidade. Entretanto, se a intenção era boa, a teoria era falha: com ou sem ajuda, o bom Papa poliglota jamais conseguiria pronunciar o nosso ão. Cada língua tem sons que só seus falantes nativos são capazes de distinguir e, por isso mesmo, de reproduzir. Por mais perfeita que seja nossa pronúncia de um idioma alheio, sempre haverá algum fonema que irá trair o fato de que somos estrangeiros; é o que se chama, lingüisticamente, de xibolete, uma peculiaridade de pronúncia que atesta se fazemos parte (ou não) de um determinado grupo lingüístico.
No seu sentido primitivo, portanto, um xibolete é um tipo de senha lingüística que identifica os componentes de uma comunidade, assim como a impressão digital identifica o indivíduo. Este estranho (mas útil) vocábulo é a transliteração de um vocábulo hebraico que alguns traduzem por “espiga de grãos”, outros por “corrente de água”. Segundo o Velho Testamento (Juízes, 12: 1-15), esta palavra foi usada para distinguir entre duas tribos semitas, os gileaditas e os efraimitas, que travaram uma grande batalha. Os gileaditas, vencedores, bloquearam as passagens do Jordão para evitar que os efraimitas sobreviventes pudessem escapar. Os sentinelas exigiam que todo o passante dissesse /shibboleth/; como os efraimitas não tinham o fonema /x/ em seu dialeto, só conseguiam pronunciar /sibboleth/ (com /si/ na primeira sílaba), sendo assim reconhecidos e executados.
Há vários exemplos conhecidos desse uso hostil da linguagem para diferenciar grupos humanos. No massacre das Vésperas Sicilianas, no séc. XIV, os odiados franceses eram reconhecidos pela maneira como pronunciavam ciceri (uma espécie de ervilha seca). Nas revoluções de 1893 e de 1923, no Sul do Brasil, quando foi amplamente empregada a execução por degola, os mercenários castelhanos eram identificados fazendo-os pronunciarem palavras que contivessem algum desses fonemas exclusivos; exemplos conhecidos são o jota (o nome da letra) e doispauzinhos. Em qualquer um dos casos, o estrangeiro estava perdido, porque teria de produzir sons que o falante nativo do Espanhol não conhece: a resposta, com suas fatais conseqüências, era sempre algo como /rôta/ ou /paucinhos/.
Ora, talvez o xibolete mais evidente do Português seja exatamente o ditongo ão, como já tinha notado Monteiro Lobato no seu Emília no País da Gramática (aliás, não por acaso, foi exatamente esse o ditonguinho que o Visconde de Sabugosa seqüestrou e que acabou sendo salvo por artes da astuciosa boneca). As instruções do Mário eram inúteis, mesmo para um poliglota do quilate de João Paulo II: por mais que o falante estrangeiro se esmere em pronunciar este ditongo, sempre vai persistir um traço de estranheza que o ouvido nativo não deixará de captar. Vários autores afirmam, inclusive, que foi essa dificuldade que transformou a ilha de Coração, como chamavam os portugueses, na ilha de Curaçau, nas Antilhas Holandesas.
Hoje, o termo teve seu significado ampliado, podendo indicar, também, um hábito ou uma característica que sejam distintivos. Um oportuno artigo sobre etiqueta à mesa me ensinou, por exemplo, que “a maneira como se usam os talheres para comer a fruta é o xibolete que distingue quem é quem”. Já no pólo mais sério, Freud, ao censurar a posição de Jung de diminuir deliberadamente o valor e a importância do fator sexual na Psicanálise, afirmava, em 1919: “O fator da sexualidade é o nosso xibolete“. Eu confesso que preferiria escrever xibolé ou xibolê, mas como Aurélio, Houaiss e Luft registram xibolete, eu baixo as minhas orelhas e vou puxar minha carrocinha.
Depois do Acordo:
lingüístico > linguístico
conseqüência > consequência
seqüestrou > sequestrou
pólo > polo