Se eu acreditasse em anjos e demônios, diria que há um influente diabinho, em nosso sótão, que trabalha incessantemente para nos fazer preferir a ficção à realidade. Não me espanta que histórias fantásticas, mas verossímeis — as chamadas “lendas urbanas” — transitem velozmente entre pessoas que, por tudo mais que fazem e que fizeram, demonstram estar em pleno domínio de suas faculdades racionais. Já embarquei em algumas dessas lendas, mas hoje consigo reconhecê-las de longe: sua trama engenhosa demais, seu perfeito encadeamento lógico, sua verossimilhança impecável (leia-se: elas têm tudo para ser verdade), a rica minúcia dos detalhes, tudo nelas é demasia, numa perfeição que só encontramos na literatura, mas raramente na vida real. É um paradoxo: essa mesma perfeição, que é o motivo preponderante para explicar a pronta aceitação de quem ouve tais lendas, é a nota falsa do violino que me faz suspeitar da partitura toda, o grande indício de que se trata apenas de um daqueles felizes momentos em que a imaginação de um autor anônimo veio coincidir com a fantasia de pessoas normais como nós.
Esse criativo diabinho também trabalha nos estudos da linguagem, onde demonstra uma acentuada preferência pelo setor da Etimologia: as histórias idealizadas para a origem de certas palavras, apesar de totalmente falsas, são muito mais interessantes que a verdadeira origem, muitas vezes chã e desengraçada. Vale, no entanto, o mesmo caveat do parágrafo anterior: quanto mais verossímil, mais engenhosa a origem proposta para um vocábulo, maiores as chances de ser apenas uma lorota. Já mencionei isso ao escrever sobre coitado, inocente vocábulo derivado de coita (no Português Antigo, “cuidado, sofrimento”), que recebeu uma hipótese muito mais picante e, sejamos honestos, mais atraente para sua origem: seria derivada de coito (“cópula”), o que tornaria coitado, portanto, uma versão mais elegante do popular “f*dido“. Quando explico isso a quem vem pedir, com o olho brilhante de malícia, confirmação dessa tolice, não posso deixar de perceber sua decepção com a verdade, porque isso deixa coitado um vocábulo comum, desinteressante, igual a centenas de outros. Sinto muito; mais uma vez cito Thomas Huxley, quando ele fala da Ciência: é trágico quando os feios fatos matam uma bonita teoria! Os casos que vou apresentar são exemplos clássicos dessas fantasias.
Canguru — É evidente que este vocábulo só ingressou nas línguas do Ocidente depois que a expedição do famoso Capitão Cook pelos Mares do Sul revelou-nos a existência desse curioso mamífero. No seu diário, Cook relata que, ao ancorar o Endeavour, para reparos, numa região onde hoje é Queensland, na Austrália, avistou um estranho animal com uma bolsa na barriga, que “os nativos chamam de Kangooroo ou Kanguru“. Pronto: datada de 1770, aí estava a certidão de batismo do bichinho, assinada pelo severo explorador inglês; foi essa mesma expedição, por falar nisso, que nos trouxe o exótico e insubstituível tatoo, de onde veio a atual tatuagem (que, para quem não sabe, nada tem a ver com o nosso simpático tatu).
O problema é que kangooroo era o nome de um tipo especial de canguru, e — pior ainda! — no idioma dos nativos que Cook interrogou, da impronunciável tribo dos Guugu Yimidhirr (é assim mesmo!). Quando outros exploradores desembarcaram em pontos diferentes da Oceania, habitado por tribos diferentes, os nomes que ouviam para o referido animal em nada se assemelhavam a “canguru”, o que despertou a sacrílega suspeita de que Cook estivesse errado. Logo a imaginação entrou a funcionar e criou-se uma história bem do agrado do grande público, que sempre se fascina por esses mexericos sobre a estupidez dos grandes personagens: quando o comandante Cook fez a lendária pergunta (certamente falando bem alto, num Inglês bem pausado, como os súditos de Sua Majestade costumavam se dirigir aos nativos de todo o mundo), o espantado aborígine teria respondido apenas “Não compreendo!” — e Sir James Cook, num acesso inédito de burrice, teria tomado isso como o nome do animal. Lenda igualmente ingênua circula sobre o nome da península do Iucatã: quando interrogado sobre o nome daquela região, o indígena teria respondido ao conquistador espanhol um assustado “Yucatán“, que significaria “Eu não sei”. E nas escarpas geladas dos Andes, um peruano de touquinha, ao perguntarem como se chamava a lhama, animal tão esquisito quanto o canguru, teria se limitado a repetir, como um eco incompleto, a última palavra da pergunta feita em Espanhol — “Como se llama?“. Acreditar em exploradores e cientistas competentes que cometem equívocos grosseiros ou em peruanos que fazem eco requer muita ingenuidade — e talvez por isso mesmo essas historinhas tenham até hoje tanto sucesso.